O Brasil certamente não é o país da impunidade, mas sim da seletividade penal, afirma Sandra Carvalho, coordenadora da Justiça Global, ao analisar todo o andamento do caso do Massacre do Carandiru, que no próximo dia 2 de outubro completa 24 anos. Na terça-feira, dia 27, saiu a decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo anulando os julgamentos dos 74 policiais condenados no massacre. Para Sandra, que esteve dentro do presídio horas depois da chacina e vem acompanhando o caso desde então, o vergonhoso papel do Judiciário serve para mostrar como, no lugar de avanços, há regressões na política institucional, altamente encarceradora e punitivista quando se trata de responsabilizar negros e pobres, mas que quase nunca responsabiliza agentes do Estado pelas violações que cometem.
Sandra lembra que, na época, trabalhava na Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (CTV), vinculada ao Núcleo de Estudos da Violência da USP, e, com membros da CTV, foi para a frente do presídio ao saber da suposta rebelião. «Ficamos horas do lado de fora, com os familiares dos presos e um clima tenso, com a polícia ameaçando soltar os cachorros em cima das pessoas. Quando os membros da CTV conseguiram entrar, os corpos já tinham sido recolhidos, mas pudemos ver ainda muito sangue por todo lado, especialmente sobre os colchões. Era evidente que muitos haviam sido mortos dentro de suas próprias celas, sem ter para onde correr ou se defender», explica a coordenadora da Justiça Global. «Naquela época, já era bem claro que o governador (Luiz Antonio Fleury), que era promotor de Justiça, e o secretário de segurança (Pedro Franco de Campos), também promotor, haviam autorizado a entrada da polícia militar na casa de detenção, mas nunca conseguimos que eles fossem ao menos indiciados»
Na época, a comissão e outras organizações de direitos humanos já faziam diversas reuniões com o secretário de segurança, conhecido por sua linha dura. Somente naquele ano, mais de 1.400 pessoas foram mortas em todo o estado de São Paulo. O comandante da PM na época, o coronel Ubiratan Guimarães, chegou a ser condenado em 2001 a mais de seiscentos anos de prisão pelas 111 mortes, mas sua sentença foi anulada posteriormente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Com sua morte, em 2006, o caso foi encerrado. Agora, com a anulação dos julgamentos dos 74, chegaremos a 24 anos do massacre sem que ninguém seja efetivamente responsabilizado por ele. «Olhando todo o volume de evidências que foram colhidas no caso, não apenas contra os policiais que entraram no Carandiru, mas também contra as autoridades que autorizaram a entrada da polícia militar, é vergonhoso o papel da Justiça, especialmente por considerar legítima defesa em uma ação contra homens encurralados e desarmados», afirma Sandra.
A falta de responsabilização também joga luz sobre as dificuldades nas investigações contra agentes do Estado no país, lembra a coordenadora. No caso dos 74 PMs acusados, o argumento de que não é possível individualizar as ações e assim definir responsáveis – assim como o da legítima defesa – já foi usado em outros crimes cometidos por policiais, como na Chacina do Castelinho, também em São Paulo, lembra Sandra. «De fato, as investigações deixaram a desejar. Aí que se mostra muito necessário debater e implementar a independência dos órgãos de perícia (que são ligados à Polícia Civil) e também o controle externo das polícias, para que sejam mais transparentes as investigações. As apurações que ocorreram foram por causa da pressão nacional e internacional de organizações e entidades de direitos humanos. Sem essa pressão, talvez não ocorresse investigação alguma», explicou, acrescentando que «independentemente da individualização, os laudos comprovaram que houve um massacre, o que torna importante a responsabilização de todos os envolvidos na operação que resultou no maior massacre de presos do Brasil».