Armas menos letais: Uso e abuso pelas forças públicas

O custo humano da repressão e resposta aos protestos na Nicarágua em 2018 e às paralisações e mobilizações sociais no Chile, Bolívia, Equador e Colômbia em 2019, das inúmeras queixas de tortura no contexto de prisões e interrogatórios no Brasil e no México, dos abusos de autoridade contra a oposição política na Venezuela, das mortes sob custódia do Estado no âmbito das rebeliões nas prisões da Colômbia, Peru e Argentina e, mais recentemente, do assassinato do afro-americano George Floyd por abuso de força, mesmo sem o emprego de armas pela polícia de Minneapolis nos Estados Unidos, torna imperativo que a sociedade como um todo entenda os limites do uso legítimo da força, incluindo no uso de armas, e condene seu abuso.

Os agentes encarregados da aplicação da lei, assim compreendidos como a polícia, o exército e os guardas prisionais, desempenham uma tarefa fundamental para a manutenção da ordem pública e o respeito pelas garantias e liberdades dos cidadãos, no entanto, o escrutínio de suas ações por seus superiores e pela justiça são marginais. Essa negligência encontra apoio em um segmento importante da população de das Américas, que justifica o abuso da força, particularmente no contexto de protestos sociais, operações de segurança, prisões e na administração de centros de detenção.

A falsa crença de que uma mão forte resulta em maior segurança tem facilitado o fortalecimento de tendências autoritárias nas Américas, justificando a saída do exército às ruas para a realização de funções de policiamento , validando múltiplos abusos por parte da polícia e das forças de choque no contexto de protestos sociais, normalizando o tratamento desumano e degradante nas prisões e mascarando a discriminação de classe e raça que criminaliza a pobreza e a filiação grupos étnicos e raciais.

No âmbito das Nações Unidas, dois instrumentos foram desenvolvidos com o objetivo de informar o trabalho dos Estados sobre as ações de seus agentes encarregados da aplicação da lei. Esses instrumentos buscam fornecer diretrizes técnicas para que eles possam fazer um uso diferenciado da força de acordo com o cenário que enfrentam.

O primeiro instrumento é uma fonte primária dos princípios sobre o uso da força, com ênfase nas armas de fogo: Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo (doravante denominados Princípios Básicos), e datada de setembro de 1990.

Com quase 30 anos de diferença, o segundo, publicado em sua versão avançada em inglês no início deste ano, coleta e expande os princípios do uso da força e concentra-se no que hoje são chamadas armas menos letais: Guia sobre Armas Menos Letais na Aplicação da Lei: na aplicação da lei (doravante, o Guia).

As armas menos letais foram projetadas para reduzir o risco de ferimentos graves ou morte em intervenções de ordem pública ou em cenários de detenção, mas permitem a mitigação ou resposta ante ameaças iminentes. As armas menos letais são meios de coerção e podem causar danos físicos irreparáveis, incluindo a morte, principalmente quando boas práticas ou as instruções do fabricante não são implementadas. Por esse motivo, o Estado só deve dotá-las àqueles que receberem treinamento para o seu manejo adequado, e depois de haver desenvolvido regulamentações robustas sobre seu uso.

Com base na importância e nas implicações do monopólio do uso da força por parte do Estado, este artigo apresenta os princípios do uso legítimo da força e explora a contribuição do novo Guia para as ações dos agentes de segurança na região.

O monopólio do uso legítimo da força e o direito internacional

Em uma democracia funcional, o Estado, em nome de seus cidadãos, detém o monopólio do uso legítimo da força e administra-a em estrita observância do delicado equilíbrio entre proteger a população e não violar seus direitos, inclusive os que violam a lei. Esse poder baseia-se na confiança que os cidadãos depositam naqueles que escolheram para garantir seu bem-estar e liberdade. Portanto, seu abuso corrói o contrato social entre a população, seus representantes e instituições.

Deter o monopólio do uso legítimo da força não é uma responsabilidade menor, sua administração implica o cumprimento de obrigações constitucionais e internacionais positivas e negativas. Isso significa que o Estado deve garantir que o uso da força por seus agentes de segurança não prejudique o respeito, a promoção e a proteção dos direitos à vida, a integridade física e mental e a segurança de seus cidadãos, e que não resulte em tortura, tratamento cruel, desumano e degradante ou execuções extrajudiciais ou arbitrárias. As condutas acima enunciadas, além de serem graves violações do Direito Internacional dos Direitos Humanos, comprometem, portanto, a responsabilidade internacional do Estado.

Não é incomum ver reações adversas ao uso do termo violações de direitos humanos para descrever abusos estatais e sem incluir a violência praticada por indivíduos ou grupos armados fora da lei. Isso ocorre porque esses últimos não são sujeitos do Direito Internacional Público, são os Estados, como entidades soberanas, que assinam tratados internacionais e são responsáveis por sua conformidade. Isso não significa, no entanto, que a população civil, ou grupos ilegalmente armados, goze de impunidade, eles simplesmente respondem a um marco normativo distinto, o direito penal nacional ou internacional no caso de responsabilidade por crimes de guerra, contra a humanidade ou genocídio.

Quando um agente ou um grupo de agentes da força pública ou das forças armadas viola seu mandato, ele deve responder ante o direito penal doméstico pelo crime derivado de sua ação ou omissão, além de incorrer na responsabilização internacional do Estado em face à organismos regionais e internacionais, por agirem em seu nome e sob o poder e armas à ele outorgados pela autoridade estatal.

Da força letal à menos letal

Os padrões internacionais de direitos humanos fazem uma distinção clara entre força letal e o que foi chamado de força “não letal”, hoje apresentada como “menos letal”. Ferramentas militares como tanques, aviões de combate e mísseis foram projetadas para matar o inimigo.

Os agentes da força pública também têm o poder de usar força letal em um número limitado de circunstâncias de aplicação da lei, geralmente com armas de fogo carregadas com munição de guerra. Por sua vez, armas menos letais são usadas como meio de coerção com menor risco de causar ferimentos graves ou morte.

Com o objetivo de reduzir o uso da força letal pela força pública, em 1990 as Nações Unidas apelaram, através do documento de Princípios Básicos, aos Estados membros para expandir a adoção de “armas incapacitantes não letais” para a força pública. Naquela época, a polícia ostensiva não tinha opções intermediárias entre o bastão e, em alguns países, uma arma de fogo. Os Princípios abordaram essa lacuna e incumbiram os Estados de supervisionarem cuidadosamente a fabricação, distribuição e uso das armas menos letais.

Embora desde então a variedade de instrumentos disponíveis para o uso da força pública tenha aumentado significativamente, tanto no desenvolvimento de novas tecnologias quanto na transferência de armas do setor militar para o setor civil, a supervisão do Estado tem sido mínima ou nula. De maneira drástica, houve uma evolução das mangueiras de bombeiros usadas contra o movimento dos direitos civis do Alabama nos tempos do Dr. Martin Luther King Jr. para a fabricação de veículos blindados capazes de disparar jatos de água misturados a produtos químicos irritantes.

As imagens de seu uso para dissipar manifestações não são estranhas a países como Chile ou Venezuela. Um exemplo de transferência são as granadas leves e sonoras, ou as granadas de choque, inicialmente projetadas como munição tática para situações como a libertação de reféns, e atualmente usadas em alguns países para dispersar protestos pacíficos ou “manter a ordem” dentro de prisões.

A realidade indica que o crescimento da indústria de armas menos letais encontrou impulso na lucratividade de um negócio mal monitorado e regulamentado. Consequentemente, foram desenvolvidas armas que criam um alto risco de danos a terceiros e até armas consideradas intrinsecamente cruéis.

Um avanço a ser destacado, no entanto, é que, diante da crescente conscientização sobre o potencial das armas classificadas como não letais de causar ferimentos graves ou morte, e os riscos de fomentar uma crença equivocada, a comunidade internacional optou por adotar e promover o termo “menos letal”. No entanto, o termo não letal persiste nas Américas, em discursos oficiais e nos regulamentos que regulam o uso da força, uma decisão que aumenta o risco de abuso por parte de agentes da força pública e a vulnerabilidade da população civil, que não espera a morte como resultado de um encontro com as autoridades.

O novo Guia das Nações Unidas constitui um elemento importante para mudar essa situação, é também o instrumento internacional que aborda mais detalhadamente a aplicação dos princípios do uso da força a armas específicas, levando em consideração suas características e funcionamento. O Guia procura ser um instrumento dinâmico que responda a novos desenvolvimentos e, portanto, será revisado a cada cinco anos.

Esta disposição está alinhada com a obrigação estatal de revisar continuamente os programas de treinamento dirigidos aos encarregados da aplicação da lei. O Guia abrange, entre outros tópicos, os princípios e considerações gerais sobre o uso da força e das armas menos letais; as armas ilícitas; o uso da força em situações específicas; o uso de certos tipos de armas com exemplos de uso legítimo e ilegítimo e o design, teste e seleção de armas. Apesar de ser um instrumento recente, os tribunais africanos já se pronunciaram sobre sua utilidade e a facilidade de sua adoção prática.

Os princípios do uso legítimo da força

O trabalho dos agentes encarregados da aplicação da lei deve ser orientado primeiramente a deter, mitigar ou neutralizar as ameaças à segurança das pessoas sob sua jurisdição, respeitando e salvaguardando a vida e a dignidade humanas. Somente nos casos em que uma solução pacífica não é possível, justifica-se recorrer ao uso razoável da força, de acordo com seus 5 princípios orientadores.

Devido à sua relevância para a manutenção da segurança pública e do Estado de Direito, os princípios do uso legítimo da força, compreendidos desde as técnicas de luta corporal até o uso de armas menos letais ou letais, aplicam-se em todos os momentos e locais, incluindo estados de emergência ou exceção. Nesse sentido, o documento de Princípios Básicos estabelece que circunstâncias excepcionais, como instabilidade política interna ou qualquer outra situação de emergência pública, não podem ser invocadas para justificar a violação de seu conteúdo. O texto pede aos governos que tipifiquem o crime de uso arbitrário ou abusivo da força, incluindo o uso de armas por agentes encarregados da aplicação da lei.

O primeiro princípio é a legalidade, geralmente equiparada a um ato legal. No entanto, o princípio compreende duas dimensões. A primeira refere-se ao fato de que o uso da força deve responder a uma legislação nacional clara e de acordo com o direito internacional, e a segunda que o objetivo, o fim que se pretende alcançar com o uso da força, deve ser legítimo no contexto de tal legislação. Nem todo ato lícito cumpre um objetivo legítimo. Com a recente publicação do Guia, os Estados devem iniciar a revisão de seus regulamentos internos, incluindo o escopo do uso das armas menos letais.

A precaução é o segundo princípio e abrange o conhecimento e o equipamento com que devem contar os agentes encarregados da aplicação da lei para implementar a legislação nacional adotada sob o princípio da legalidade. O planejamento, controle e organização de qualquer operação deve procurar evitar o uso da força, tanto quanto possível, e sempre minimizar os danos causados pelo seu uso.

O Estado tem a obrigação de garantir que os agentes encarregados de mediar e responder a situações que ameacem a segurança tenham sido treinados para atuar de acordo com os regulamentos relativos ao uso da força, incluindo esses princípios, e ao manejo legítimo de técnicas de luta corporal e uso das armas de dotação que lhe foram confiadas.

Da mesma forma, esse princípio contempla que os referidos agentes tenham o equipamento de proteção adequado (capacetes, escudos, coletes) para realizar seu trabalho no contexto em que operem (vias públicas, centros de privação de liberdade, distúrbios) e que entendam como o mesmo reduz seus riscos, minimizando a necessidade do uso de armas. A tendência de militarização que prevalece em vários países da região contraria o princípio da precaução, uma vez que a priorização do uso da força ostensiva sobre a investigação e a caracterização de setores da população como “inimigos” aumentam o risco do uso da violência por parte da força pública e da população civil.

O terceiro princípio é o da necessidade, geralmente interpretado de maneira deturpada como o dever do agente de segurança de responder a uma ameaça através do uso da força. No entanto, o princípio da necessidade realmente se refere à ponderação do agente sobre outras alternativas que não o uso da força para cumprir legalmente o objetivo legítimo que se pretende alcançar. Quando o uso da força acaba por ser considerado o último recurso disponível ao agente estatal, ele deve sopesar mais dois elementos em suas ações, a intensidade mínima necessária para cumprir seu objetivo (quanta força) e a duração necessária de seu emprego (quanto tempo). “O uso da força deve cessar quando o objetivo for alcançado ou quando não puder mais ser alcançado.” Ambos os aspectos são determinantes quando se torna necessário recorrer à escolha e uso das armas menos letais.

Quando o uso da força é necessário, o princípio da proporcionalidade passa a mediar a relação entre os danos que podem ser causados, a gravidade do delito e o objetivo legítimo que se pretende alcançar. A proporcionalidade é frequentemente interpretada como equivalência na resposta à ameaça, como se justificasse uma resposta violenta à violência.

No entanto, essa interpretação errônea ignora e invisibiliza a função dos agentes encarregados da aplicação da lei, que é servir e proteger a comunidade, mesmo àqueles que os ameaçam, e que essa obrigação não é de caráter recíproco. O uso da força deve, portanto, ser moderado, a fim de não exceder seu objetivo, deve procurar reduzir danos e ferimentos à pessoa a quem se dirige, e com atenção à segurança de outras pessoas que estão no local; o uso da força não deve ser indiscriminado.

Finalmente, o uso da força por agentes estatais, a estrutura da legalidade e a resposta à necessidade de mediação com proporcionalidade devem ser avançados em estrita observância da igualdade e da não discriminação. Este quinto princípio, também transversal ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, implica que sejam conhecidas e consideradas as vulnerabilidades especiais ao leque de manobras e armas disponíveis para o uso legítimo da força.

Armas menos letais de uso comum nas Américas

De acordo com a Omega Research Foundation (doravante Omega), as armas menos letais utilizadas com mais frequência nas Américas são: agentes químicos irritantes (gás lacrimogêneo e spray de pimenta), projéteis de impacto cinético (balas de borracha), bastões, algemas e outros instrumentos de contenção, mangueiras de água pressurizada, granadas de choque (comumente conhecidas como granadas/bombas de efeito moral no Brasil),  e armas de choque elétrico. O conhecimento do objetivo e das circunstâncias do uso potencialmente legítimo de algumas dessas armas menos letais permite a análise objetiva de exemplos problemáticos de seu uso, como os incluídos neste mapeamento interativo da Omega sobre incidentes envolvendo agentes encarregados da aplicação da lei no contexto da Covid-19.

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Informação retirada do seguinte link

As recomendações práticas existentes sobre o uso de armas menos letais tornam possível alinhar a resposta do estado aos padrões do direito internacional. No entanto, na prática, esse alinhamento ainda não foi consolidado. A seguir serão apresentados e analisados alguns casos que ilustram a importância de se promover um debate informado sobre esse tema na região.

“Balas de borracha”

Os projéteis de impacto cinético são comumente conhecidos como balas de borracha, mas também incluem projéteis feitos de madeira, plástico e outros materiais, como sacos de pano cheios de pellets de chumbo. Embora seja possível disparar um único projétil ou vários projéteis, por exemplo bolas, peças, blocos ou cilindros, o Guia esclarece que a munição que dispara vários projéteis não está de acordo com os princípios do uso da força devido à sua falta de precisão. O mesmo se aplica aos pellets de chumbo, que também produzem um impacto com energia excessiva e podem causar danos desproporcionais ou injustificados, razão pela qual o Guia estabelece que seu uso deve ser proibido.

O uso de projéteis de impacto cinético é limitado a circunstâncias e padrões de qualidade muito específicos e, mesmo assim, está sujeito aos princípios de necessidade e proporcionalidade. Seu uso deve se dar na abordagem de indivíduos violentos que representam um risco iminente, e não para dispersar grupos de pessoas que exercem seu direito de protestar. Devido ao risco de morte ou ferimentos graves, como fraturas ósseas, danos a órgãos internos, cérebro ou olhos, constitui uso ilegítimo de um projétil cinético atingir a parte superior do corpo ou disparar à queima-roupa. Em todos os casos, o disparo deve ser efetuado a partir da distância recomendada pelo fabricante e validada pelo Estado, e apontado para o abdome inferior ou para as pernas do indivíduo.

Um caso recente e altamente contestado do uso ilegítimo de projéteis cinéticos foi realizado pelas forças de segurança pública chilena durante os protestos, um direito protegido por vários instrumentos internacionais, iniciados em outubro de 2019. O Instituto Nacional de Direitos Humanos informou que 445 pessoas sofreram ferimentos nos olhos, incluindo em muitos casos a perda de um olho, por disparos de espingarda, de pellets de borracha. Esta figura chocante sugere uma prática generalizada dos Carabineros, visando a parte superior do corpo, violando os princípios de necessidade e proporcionalidade.

Documentos vazados para a mídia, revelaram que os Carabineros conheciam os riscos associados aos pellets de borracha desde 2012, quando encarregaram um médico legista de realizar um estudo para avaliar o nível de penetração da munição no alvo, o qual foi ignorado. O legista alertou sobre a falta de precisão da munição (a 30 metros, dois dos 12 pellets atingiram o alvo), bem como a importância de ter uma distância maior que 30 metros para disparar, minimizando o risco de causar morte ou ferimentos graves como a ruptura do Globo Ocular.

Em novembro de 2019, a Universidade do Chile publicou os resultados de uma análise realizada a pedido da Unidade de Trauma Ocular do Hospital del Salvador, para determinar a composição dos pellets usados pela polícia durante os protestos. A análise concluiu que os projéteis continham apenas 20% de borracha, sendo compostas principalmente por metais ou minerais de alta dureza, como sílica, sulfato de bário e chumbo. A Universidade alertou que esses materiais aumentam significativamente os danos que um projétil cinético pode causar. Hoje, o Guia enfatiza que uma revisão legal deve ser realizada antes da aquisição e implantação de armas menos letais e deve basear-se em pareceres jurídicos, técnicos, médicos e científicos imparciais.

O uso de munição que dispara vários projéteis também é comum na Argentina, onde são conhecidos como postas de borracha. Seu uso abusivo foi documentado, por exemplo, para dispersar protestos sociais e, geralmente, sem cumprir o aviso prévio estabelecido por regulamentos internacionais, para que a pessoa a quem se dirige tenha a oportunidade de desistir de qualquer ato violento. Essa prática também permeou os ambientes de privação de liberdade; Em 2019, o uso de “balas de borracha” foi verificado em 21% dos casos de tortura e outros maus-tratos registrados pelo Gabinete Penitenciário Nacional (Procuración Penitenciaria de la Nación), ou seja, nesses casos não foi buscado um objetivo legítimo, mas causar dor e sofrimento com o objetivo de, entre outros, punir, discriminar ou conseguir uma confissão.

A trágica morte de Dilan Mauricio Cruz ocorreu em 23 de novembro em Bogotá, Colômbia, depois de ser atingido por um projétil do tipo saco de feijão, disparado por um agente do Escuadrón Móvil Antidisturbios (ESMAD), no âmbito de um protesto. Esses projéteis são basicamente sacos de pano cheios de pellets de chumbo ou aço, e há vários riscos associados ao seu uso, por exemplo, o saco pode se romper e, em vez de colidir com o corpo, liberar pellets que podem penetrar no corpo do alvo e dispersarem-se indiscriminadamente. No caso de Dilan, a zona de impacto, o crânio acima da orelha e, possivelmente, a distância, foram os fatores determinantes de sua morte, ocorrida quando exercia seu direito de protestar. Segundo o Instituto Nacional de Medicina Legal, Dilan sofreu trauma cranioencefálico penetrante na cabeça.

Em contextos de manifestações públicas, uma boa prática é mobilizar agentes que transmitam a mensagem de que estão dispostos a conversar e facilitar o protesto, enquanto outros agentes se mantém fora da vista do protesto, equipados para intervir se um grande número de manifestantes se comportar violentamente. Isso se mostrou verdadeiro em recentes protestos contra o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, onde um ambiente já tenso foi exacerbado pela presença de policiais de aparência militar que recorreram ao uso abusivo da força.

Gás lacrimogêneo

Os agentes químicos irritantes são usados de longe ou perto, dependendo do meio de dispersão. Os agentes mais comuns são gases CS ou CN (geralmente chamados gás lacrimogêneo) e OC/pimenta e PAVA (geralmente chamado spray de pimenta), e são dispensados por aerossóis manuais, granadas de mão, projéteis/granadas lançadas com armas e canhões de água.

O Guia não fornece um exemplo de uso potencialmente legítimo de gás lacrimogêneo lançado à distância, mas observa que o objetivo dessa prática é que um grupo se disperse e evite a violência. Esse modo de uso é controverso, pois o gás lacrimogêneo é de natureza indiscriminada, pois não distingue “entre manifestantes ou não-manifestantes, ou entre pessoas saudáveis ou doentes”.

Existe uma extensa lista de riscos associados a esses agentes e circunstâncias ou contextos em que não devem ser utilizados, por exemplo, geralmente não devem ser utilizados em espaços fechados, como prisões, devido ao risco de morte ou ferimentos graves por asfixia. Certos grupos são mais vulneráveis aos efeitos de agentes químicos irritantes, como idosos, crianças, mulheres grávidas ou pessoas com problemas respiratórios. Como regra geral, deve-se sempre usar o agente com o menor nível de toxicidade uma vez que é provável este ainda seja eficaz.

O uso de agentes químicos irritantes para reprimir protestos pacíficos tem sido um tema recorrente nas Américas. Recentemente, a Anistia Internacional lançou uma plataforma interativa sobre gás lacrimogêneo, que contém um mapa de incidentes composto por mais de 500 usos abusivos de gás lacrimogêneo em 22 países, 8 dos quais nas Américas e a maioria dos incidentes realizada no âmbito de protestos sociais. Deve-se notar que especialistas médicos alertaram que a pandemia do Covid-19 acentua os riscos associados ao uso desses agentes e se opuseram ao seu uso em recentes protestos contra a violência policial nos Estados Unidos.

Outro contexto em que o uso abusivo desses agentes é frequente, mas muito menos visível, são em prisões e outros locais de privação de liberdade. O relator especial das Nações Unidas sobre tortura e outros maus-tratos, o professor Juan Méndez, visitou o Brasil em 2015 e concluiu que a prática de atos de tortura e maus-tratos era “frequente” e incluía o uso de spray pimenta e gás lacrimogêneo em uma lista dos métodos mais usados. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (O Mecanismo) também documentou que em vários estados brasileiros, os centros de detenção ainda têm granadas de gás lacrimogêneo projetadas para dispersar um grande número de pessoas em espaços abertos, e não fechados.

Embora possam parecer mais seguros, os aerossóis ou sprays de pimenta também são usados para infligir tortura e outros maus-tratos. O Mecanismo informou sobre a prática adotada sob o comando da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (Ftip) e sobre os “procedimentos” realizados nas prisões do estado do Ceará. Esses consistem em ordenar que os prisioneiros se sentem quase nus no chão, em fileiras apertadas e com as mãos na cabeça. Por vezes, eles precisam permanecer assim sem se mexer por horas, mesmo durante a madrugada, e qualquer movimento é punido com spray de pimenta ou golpes de cacetete.

Em outro exemplo no estado de Mato Grosso, os agentes penitenciários algemaram um prisioneiro pelas mãos e pelos pés, conectando os instrumentos de contenção e colocando o prisioneiro no chão com o rosto para baixo, em uma posição chamada de “pacotinho”. Além de chutar e bater na pessoa imobilizada, os policiais jogaram spray de pimenta em um saco plástico e o colocaram na cabeça do detento.

O uso repetido de agentes químicos irritantes em espaços fechados contra pessoas sob custódia também foi documentado na Venezuela. Várias pessoas detidas durante os protestos em massa de 2017 alegaram que as forças de segurança pública detonaram cartuchos de gás lacrimogêneo dentro de veículos onde se encontravam pessoas sob custódia. Da mesma forma, alega-se que agentes da Guarda Nacional Bolivariana (GNB), em diferentes ocasiões, esfregaram pó químico irritante no rosto, diretamente nos olhos, nas feridas causadas por projéteis, e em uma ocasião, no ânus dos detidos.

Conclusão

O desconhecimento da maioria da mídia sobre o que implica o uso legítimo da força contribui para a disseminação de narrativas que desumanizam segmentos da população civil particularmente vulneráveis à discriminação. Ao desviar a atenção do abuso para a identidade, causa ou partido das vítimas, a mídia patrocina debates polarizados que enfraquecem os valores democráticos, ameaçam a proteção da dignidade e da integridade da população como um todo e minam a confiança nas instituições.

Diante de um contexto de abuso generalizado, a prestação de contas deve fazer parte de uma transformação mais ampla, com a responsabilização de todas as pessoas envolvidas, incluindo aquelas que possuíam conhecimento dos fatos e não agiram. Nesse sentido, o Guia explica a responsabilidade do governo e de outras autoridades políticas, afirmando que “eles devem promover uma cultura de prestação de contas e devem ser considerados responsáveis se promoverem ou permitirem comportamentos ilícitos”.

Os legisladores têm a responsabilidade de garantir que o abuso de força ou de armas de fogo seja tipificado em nível doméstico. Os advogados de defesa, promotores e juízes devem conhecer o tipo de armas, elementos de proteção e capacitação disponíveis para as forças de segurança de seu país e estudar cada denúncia de abuso de força sob a lupa dos princípios do uso legítimo da força e de acordo com a proibição de tortura e execuções arbitrárias. Da mesma forma, a sociedade civil e a mídia devem estar familiarizados com essas questões para monitorar as ações dos agentes encarregados de protegê-las, assim como para exigir justiça contra a violência policial, militar ou prisional.


Este artigo foi publicado originalmente em espanhol na La Silla Vacía (23 de junho de 2020).