Manoel Mattos: o primeiro caso de federalização do país

O assassinato do advogado e vereador Manoel Mattos, em 24 de Janeiro de 2009, tornou-se um caso emblemático não apenas pela brutal execução de um defensor de direitos humanos. Este foi o primeiro caso de federalização admitido pela Justiça Brasileira desde a criação do instituto, pela Emenda Constitucional 45/2004, conhecida como reforma do Judiciário. A “federalização”, no jargão técnico, é chamada de Instituto de Deslocamento de Competência (IDC), e permite que o Procurador-Geral da República requeira o deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal em casos de grave violação aos direitos humanos. Cabe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidir pela procedência do IDC, levando o caso a tramitar perante a Justiça Federal. A decisão pela federalização do caso do assassinato de Manoel Mattos ocorreu em 27 de outubro de 2010, e transitou em julgado em dezembro daquele ano, quase dois anos após o assassinato de Manoel Mattos.

Um único pedido de federalização havia sido apresentado anteriormente. Trata-se do caso do assassinato da missionária e defensora de direitos humanos Dorothy Stang, assassinada em fevereiro de 2005 no Pará. Este IDC foi negado pelo STJ em junho do mesmo ano, e o caso tramitou perante a justiça paraense.

A importância do caso de Manoel Mattos para a defesa dos direitos humanos no Brasil é lembrada, nesta entrevista, pelo advogado Eduardo Fernandes, professor da Universidade Federal da Paraíba, que atuou como um dos assistentes de acusação pela Dignitatis.

Justiça Global: Como foi o início da sua relação com Manoel Mattos? Você o acompanhou na sequência de ameaças que passou a receber por sua atuação como defensor de direitos humanos?

Eduardo Fernandes: Eu era assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra no início dos anos 2000, trabalhava na Paraíba com questões fundiárias e sabia que existia uma discussão muito grande sobre a atuação de grupos de extermínio na divisa do Estado da Paraíba com Pernambuco. Havia, naquela época, uma CPI da violência no campo na Paraíba, e também uma CPI do Tráfico de Armas e Drogas em Pernambuco. Eu conheci Manoel Mattos quando passei a trabalhar na Justiça Global. Foi por meio do então deputado estadual Luiz Couto, que iniciava uma CPI aqui na Paraíba para complementar a de Pernambuco. Meu trabalho pela Justiça Global era apurar as ameaças contra defensores de direitos humanos que atuavam na divisa – sobretudo contra a Dra. Rosemery, que era Promotora de Justiça, e contra o vereador Manoel Mattos.  Essa foi a nossa primeira aproximação.  Eu fiz uma entrevista com ele em conjunto com outros pesquisadores da Justiça Global. Fizemos um apanhado de todos os depoimentos e da documentação que ele e a Dra. Rosemery tinham e encaminhamos naquela mesma semana, em 2002, um pedido de medida cautelar à OEA. Em 15 dias, foram concedidas medidas protetivas para ele, para a Dra. Rosemery e para o Lula, que era um ex-membro de um grupo de extermínio. O próprio Lula foi vítima de queima de arquivo anos mais tarde.

JG: As ameaças contra Manoel começaram no início dos anos 2000? Foram coincidentes com o início do mandato de vereador da cidade de Itambé, em 2001?

EF: Foi praticamente isso. Ele já tinha uma atuação junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Itambé e também junto ao diretório regional do PT, então ele tinha uma vida política muito ativa que começou a incomodar bastante alguns setores da região. Principalmente por sua atuação junto a trabalhadores rurais – algumas ações de indenização contra as usinas da região paravam no meio do caminho por desistência dos trabalhadores, motivada pelo medo, por ameaças e até mesmo por assassinatos. Então mesmo antes do mandato parlamentar, já havia uma atuação e já havia uma pressão, embora não houvesse algo tão explícito. Tinha uma pressão por ele estar mexendo em uma estrutura arcaica, e ele começou a mapear isso. Em paralelo, a Dra. Rosemery, que era promotora na região, também começava verificar uma tendência, uma continuidade de circunstâncias de assassinatos que ficavam sem explicação.  E ainda tinha um agravante, porque muitos desses crimes ocorreram exatamente na divisa entre Paraíba e Pernambuco, então as etapas de execução do crime acabavam divididas entre dois estados. O crime envolve a investigação em dois estados, então é uma situação burocrática muitas vezes indefinida. Até para cumprir as diligências você precisa de autorização do outro estado, e isso vira um facilitador para esses crimes. O corpo poderia, por exemplo, ser desovado em outro estado, então todo procedimento policial era feito de um lado, se fosse ao contrário, da mesma forma. Isso fazia com que a relação ali na divisa se tornasse problemática, até porque na Paraíba, para você ficar um pouco estarrecida, o primeiro concurso para polícia civil só foi em 2002. Então eram cargos de indicação, eram nomeações, o governador do estado escolha um primo, um parente, algum amigo do prefeito, sargento, então a situação era muito complexa lá porque as relações pessoais interferiam no estado da investigação.

JG: Após o relato de todo esse conjunto de ameaças à OEA e a concessão de medidas cautelares, Manoel e os outros beneficiários contaram com proteção efetiva?

EF: Em um primeiro momento foi complexo porque se tratava de um governo de transição no ano de 2002 – saía o presidente Fernando Henrique e assumia o presidente Lula, então teve uma situação de vácuo mesmo de decisão. No outro ano, começou o comprimento das medidas e ela durou de uma forma ou de outra. No caso da Dra. Rosemery, ela contou com proteção da polícia militar, já no caso de Manoel ele não queria proteção da Polícia Militar, mas sim da Polícia Federal, aí demorou mais para ser consolidado. Ele contou com proteção, nós renovamos as medidas a cada dois anos, mas depois a proteção foi retirada. Nesse momento, havia as primeiras discussões sobre o desenvolvimento do Programa de Proteção a Defensores Direitos Humanos, e a concepção do programa é que o defensor de direitos humanos não deve ser retirado do local a não ser em caso de emergência. Ele exercia um mandato parlamentar e não poderia ser abarcado por uma concepção de proteção a testemunhas, que ocorre no Provita, um programa que já estava consolidado. O Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos engatinhava naquele momento. E a polícia colocava dificuldade de fazer esse acompanhamento dele e de outras pessoas, de outros defensores, que faziam atuações em áreas periféricas. A proteção acabava comprometida porque o programa ou quem executava o programa não conseguia entender qual era a atuação de um vereador que se compromete com a proteção de direitos humanos. A ideia não é ficar preso dentro de casa, né? Foi nesse momento que Manoel também decidiu colaborar com CPI nacional que investigava a questão dos grupos de extermínio no nordeste. Aí a coisa ficou realmente bem mais tensa.

JG: No momento em que ele foi assassinado ele estava na Paraíba. Ele contava com proteção policial nessa ocasião?

EF: Não, ele já estava há cinco ou seis meses sem proteção.

JG: E como foi o processo na justiça estadual e a posterior decisão de federalização, ou de deslocamento de competência para a justiça federal?

EF: Logo quando houve execução, no dia 24 de janeiro de 2009, a gente ficou bastante atordoado.  No primeiro momento entramos em contato com pessoal da Justiça Global para pensar como acompanhar investigação. Quando ocorre um crime dessa natureza, você já não tem mais nenhuma confiança na investigação que é feita naquele momento, porque foi a polícia da Paraíba que primeiro chegou lá, então a gente achava que poderia haver algum tipo de manipulação do local do crime. Então resolvemos oficiar de pronto o Ministério da Justiça para que a investigação fosse conduzida pela Polícia Federal, em especial por se tratar de um crime ocorrido na divisa entre dois estados, o que não foi acatado no primeiro momento. Nós acionamos diretamente a Procuradoria Geral da República e 20 dias depois iniciamos esse processo de federalização, pegando como exemplo o caso da Dorothy Stang que tinha sido negado pelo STJ em 2005. Então precisava ser feito um enfrentamento, por acharmos que poderia haver entraves não apenas no que se refere à Justiça estadual, mas especificamente no procedimento investigativo adotado pelo estado da Paraíba. Teve repercussão internacional e os próprios poderes da Paraíba e de Pernambuco entenderam que era melhor não estarem envolvidos nesse caso. O problema é que demorou quase dois anos para sair a federalização, e o processo judicial continuou correndo. Diversos procedimentos ocorreram enquanto o caso ainda não tinha sido federalizado, a parte inicial da investigação, os interrogatórios, tudo foi feito na Justiça Estadual da Paraíba. Quando houve a federalização, todo o processo foi para a Justiça Federal do estado da Paraíba, e o julgamento começou no estado da Paraíba.

A gente acredita que poderia ter sido melhor, porque as investigações poderiam ter sido aprofundadas na esfera Federal, mas boa parte do que foi aproveitado pela denúncia do Ministério Público Federal foi eu que tinha sido produzido nesses anos pelo estado da Paraíba. Nós, pela Justiça Global, pela Dignitatis, entramos como assistentes de acusação, e desta forma a gente fica restritos, do ponto de vista legal, ao que o Ministério Público conduz. Ele é o titular da ação, nós como assistentes não poderíamos ir além do que foi apresentado na denúncia.  As nossas solicitações foram apensadas à denúncia. Isso fez com que o caso viesse, em um primeiro momento, a ser julgado na Paraíba. Utilizou-se, por exemplo, a lista dos jurados da Justiça da Paraíba. Mas para nós isso impunha limitações – se o caso foi federalizado, então todo o procedimento deveria ter sido federalizado, não poderia pegar emprestado o que viria da justiça estadual. Se você tirou o caso da ordem estadual e levou para federal, e usou as mesmas coisas que o estado estava usando, qual é a diferença, afinal? Então solicitamos que o júri fosse retirado do estado da Paraíba e fosse para o estado de Pernambuco.

Todo esse procedimento foi muito duro de ser feito, porque como disse todos os procedimentos que deram base à denúncia foram feitos pela polícia da Paraíba, depois ratificados pelo Ministério Público do estado da Paraíba, e depois pelo Ministério Público Federal da Paraíba. Mas, mesmo com todas as limitações que ocorreram, estávamos diante de um caso emblemático, e a possibilidade de ter conseguido a federalização era algo muito importante no cenário nacional. Nós colocamos muita energia nesse julgamento com o trabalho de assistência da Justiça Global, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, tivermos a participação de muitos Procuradores Federais, como a Deborah Duprat.

JG: E como você avalia o resultado deste julgamento e do processo de deslocamento de competência?

EF: Eu acho que, do ponto de vista do que tinha, da investigação que foi feita ela, o julgamento atingiu o objetivo, que era que o caso não ficasse como mais um caso impune. Foi um passo importante na busca de resolutividade em um caso de grave violação de direitos humanos. Ao mesmo tempo, a gente sabe que poderia ter ido além, porque existe uma rede de financiadores desses casos aqui na Paraíba. Havia indícios de que poderia ter o envolvimento de outras pessoas, e isso ficou em aberto, o que deixa um pouco frustrado a essência do mecanismo de federalização. Mas, ao mesmo tempo, eu acho que abriu uma oportunidade para que outros casos fossem levados à Procuradoria Geral da República e ao STJ depois, porque se tornou um caso de referência para a aplicação do instituto de deslocamento de competência.

Então tem dois aspectos que eu gostaria de salientar. Foi muito importante nós termos conseguido garantir que o júri ocorresse e condenasse pessoas que estavam envolvidas com este crime, e criar o primeiro precedente de federalização desde que o instituto foi previsto, em 2004. Por outro lado, fica essa sombra sobre o que poderia ter ido além. Uma delas é: onde essas pessoas estão dentro do sistema carcerário? Nós pedimos que os executores fossem enviados para presídios federais, mas eles não foram.

As instâncias estaduais, por vezes, apresentam sérios entraves para que esses casos sejam levados adiante. É o que se vê, hoje, com o caso da Marielle, por exemplo. Você dialoga às vezes com pessoas que estão possivelmente envolvidas no crime. Então a federalização serve para lidar com essa questão, quando se tem a percepção de que as autoridades locais, por mais que não estejam totalmente envolvidas, abarcam setores, abarcam estruturas com envolvimento direto que podem atrapalhar a investigação. Isso também influi na segurança e na proteção daqueles que atuam no caso, tanto advogados assistentes, assessores de Organizações Não Governamentais… No caso de Manoel, nós tivermos a sede da nossa ONG invadida, tivermos apartamentos invadidos, então lidar com essas circunstâncias do ponto de vista local é muito complicado. Você está dialogando com quem potencialmente cometeu o delito.

 

Eduardo Fernandes foi advogado assistente do caso de Manoel Mattos. É professor na Universidade Federal da Paraíba.

 

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