Nota pública sobre a proposta de emenda à Constituição para criminalizar a posse e porte de entorpecentes e drogas afins (PEC 45/2023)

As entidades que abaixo assinam, apresentam as seguintes considerações de aspectos técnico e jurídico quanto à Proposta de Emenda à Constituição n. 45/2023 do Senado Federal, que propõe alteração no artigo 5º da Constituição Federal do Brasil, para criminalizar a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins, independentemente da quantidade, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

1- Síntese 

O artigo 5º da Constituição Federal do Brasil é o pilar dos direitos e garantias fundamentais, razão pela qual seu teor é de cunho garantidor, fundado em princípios, tais como, da igualdade, assegurando ao indivíduo o direito à vida, à saúde, à educação, à segurança, etc. A inclusão de inciso criminalizante à posse e ao porte de drogas, por si só, afronta a essência de tal artigo, vez que é absolutamente incompatível com a sua natureza e entra em flagrante conflito com tais direitos inegociáveis, especialmente no que tange à liberdade individual e à privacidade.

Ademais, o referido artigo é cláusula pétrea, sendo determinantemente vedada quaisquer alterações, em especial, aquelas que visem restringir ou tolher direitos.

De plano, se infere que tal proposta é inconstitucional!

Violação ao Princípio da Proporcionalidade e o Racismo Institucional 
O princípio da proporcionalidade ordena que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou sob real ameaça de lesão e o bem de que pode alguém ser privado, isto é, a gravidade de possível penalidade. Toda vez que, nesta relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, inaceitável desproporção. Dito isto, é evidente que as medidas apresentadas pela PEC n. 45/2023 são desproporcionais.

Princípio da Lesividade
O princípio da lesividade ou ofensividade (nullum crimen sine iniuria) exige que do fato praticado decorra lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, para que dele surja  a pretensão punitiva. De modo que, se não houver lesão ao bem jurídico ou a terceiro, não há que se falar em punição.

Segundo o jurista Raul Zaffaroni, legisladores não devem criar políticas-criminais para punir aquelas condutas que não sejam lesivas a bens de terceiros, pois não excedem ao âmbito do próprio autor, é o caso em .

Nesse sentido, leciona Zaffaroni:

“viola o princípio da lesividade ou ofensividade a proibição de porte de tóxicos para consumo próprio em quantidade e forma que não lesione nenhum bem jurídico alheio.”

Portanto, é inequívoco que a PEC n. 45/2023 viola diretamente o princípio da lesividade, tendo em vista que entorpecentes para consumo próprio não lesionam nenhum bem jurídico de terceiro e se, todavia, se argumentar que causa dano à saúde do usuário, há de ser tratado pela ótica da saúde pública, não da criminalização.

Impactos das Propostas de Emenda à Constituição no âmbito da saúde pública, sociedade e economia
O enfrentamento às drogas, trata-se de uma escolha política que, além de não cumprir seus objetivos declarados de diminuir a oferta, o consumo e a circulação de determinadas drogas, produz violência em múltiplas dimensões. Como se não bastasse tamanho fracasso, essa estratégia custa caro – muito caro – aos cofres públicos.

Ineficácia da Abordagem Punitiva e Violação de Direitos Humanos
Estudos e experiências internacionais mostram que a criminalização do uso de drogas não conduz à redução do consumo. Políticas punitivas tendem a aumentar a violência e sobrecarregar o sistema judiciário e prisional, ao passo que não acessam profundamente as causas subjacentes do abuso de drogas. São comprovadamente mais eficazes aqueles modelos que agregam Redução de Danos, Assistência Social, Integração Comunitária e os espaços de uso assistido com atenção ao respeito aos Direitos Humanos.

Evidências de Abordagens Alternativas e Análise Comparativa Internacional
A proposta de emenda à Constituição que busca criminalizar a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins não é a abordagem mais eficaz e democrática para lidar com a questão social do uso de drogas. Políticas baseadas em evidências, que enfatizem a proteção à saúde pública, aos direitos humanos e a redução de riscos e danos, podem oferecer soluções mais sustentáveis e humanitárias para este desafio complexo.

Conclusão
Em face de todo o exposto, entende-se que eventual aprovação de Propostas de Emenda à Constituição em análise consolidaria legislativamente a “coisificação” de pessoas vulneráveis e reforçaria o racismo estrutural no âmbito do sistema penitenciário brasileiro, bem como na saúde pública. Desse modo, a presente Nota se posiciona contrariamente à aprovação das PEC n. 45/2023, em trâmite no Senado Federal. E por fim, ressaltamos a inconstitucionalidade por violar diretamente princípios e preceitos fundamentais que encontram guarida na Constituição.

Assinam:

Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC
Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas
A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexs – ABGLT
Associação Brasileira de Redução de Danos
Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME
Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas – ABRAMD
Associação de Amigos/as e familiares de presos/as – AMPARAR
Associação Mãesconhas do Brasil
Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP
Agenda Nacional pelo Desencarceramento
CANAPSE – Canabiologia, Pesquisa e Serviços
Centro de Convivência É de Lei
Centro dos direitos humanos de Sapopemba – CDHS
Coletivo Aroeira – Agroecologia e Redução de Danos
Conectas Direitos Humanos
Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal
Cultive – Associação de Cannabis e Saúde
Departamento Nacional de Enfermagem em Saúde Mental – Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn)
EDUCAFRO Brasil
Escola Livre de Redução de Danos
Federação das Associações de Cannabis Terapêutica – FACT
Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP
Frente Estadual pelo Desencarceramento da Paraíba
Frente Estadual pelo Desencarceramento do Paraná
Frente Estadual pelo Desencarceramento do Espírito Santo
Frente Estadual pelo Desencarceramento Bahia
Frente Estadual pelo Desencarceramento do Acre
Frente Estadual pelo Desencarceramento de Rondônia
Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio Grande do Norte
Frente Estadual pelo Desencarceramento de Goiás
Frente Estadual pelo Desencarceramento de Santa Catarina
Frente Estadual pelo desencarceramento de Sergipe
Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro
Frente Estadual pelo Desencarceramento Tocantins
Frente Distrital pelo Desencarceramento
Grupo de Estudos sobre Álcool e outras Drogas GEAD/UFPE
Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão DiV3rso: Saúde Mental, Redução de Danos e Direitos Humanos- Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Políticas Públicas de Saúde Mental –
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (GPIPPSAM – IEA/USP)
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim
Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras – IDAFRO
Instituto Equânime Afro Brasil
Instituto Sou da Paz
Instituto Terra Trabalho e Cidadania
Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial
Justiça Global
Laboratório de Direitos Humanos e Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da UFRJ
Laboratórios de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos da Unicamp – LEIPSI
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro
Movimento nacional da população de rua
Movimento  candelária nunca mais
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NEIP
Organização Social Da Sociedade Civil – Pretas Rua
Pastoral Carcerária Nacional
Plataforma Fervo2k20
Plataforma JUSTA
PROAD – Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes – UNIFESP/EPM
Projeto Teto, Trampo e Tratamento / Instituto Adesaf – Articulação de Tecnologias Sociais e Ações Formativas
Rede Brasileira de Redução de Dano e Direitos Humanos – REDUC
Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas – REFORMA
Rede Justiça Criminal
Rede Latinoamericana de Pessoas que Usam Drogas – LANPUD
Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas – RENFA
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Tulipas do Cerrado – Rede de Redução de Danos e Profissionais do Sexo do DF e Entorno

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