
Audiência será realizada em Assunção, capital do Paraguai. Na época, os bebês foram vítimas de infecções hospitalares decorrentes de práticas incompatíveis com padrões básicos de vigilância sanitária em uma UTI neonatal.
No próximo dia 26 de setembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizará audiência pública sobre o Caso Mães de Cabo Frio Vs. Brasil, em que o Estado brasileiro responde por violações de direitos humanos relacionadas à morte de dezenas de bebês em Cabo Frio (RJ), entre 1996 e 1997. A audiência será realizada na Corte Suprema do Paraguai, em Assunção, a partir das 8h30 (horário do Brasil e no Paraguai). A Justiça Global vai retransmitir o anúncio em seu canal no YouTube.
Trata-se do primeiro processo em que o Brasil é julgado internacionalmente por violações sistemáticas ao direito à saúde de recém-nascidos e de suas famílias. O caso refere-se à morte de ao menos 96 crianças na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal da CLIPEL, clínica privada conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS). Os bebês foram vítimas de infecções hospitalares decorrentes de práticas incompatíveis com padrões básicos de vigilância sanitária.
A denúncia foi inicialmente apresentada no ano 2000 pela organização Projeto Legal, assumida posteriormente pela Associação Mães de Cabo Frio e, desde 2024, representada pela Justiça Global. Além da omissão na prevenção e fiscalização, o Estado brasileiro falhou em investigar, responsabilizar e reparar as famílias atingidas, perpetuando um ciclo de impunidade e dor.
A diretora-executiva da Justiça Global, Glaucia Marinho, lembra que a primeira condenação no Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos também envolvia uma unidade de saúde privada conveniada ao SUS, em 2006, no caso da morte de Damião Ximenes Lopes, morto após sofrer maus-tratos em uma clínica psiquiátrica.
“Tal qual o Caso Ximenes Lopes significou um marco para a luta antimanicomial, para o Sistema Único de Saúde e para o avanço da política de desinstitucionalização, esperamos que este caso também fortaleça o SUS como um patrimônio do povo brasileiro, com avanços em políticas de vigilância infectológica e sanitária, além do cuidado com as mães e os recém-nascidos”, afirmou a diretora-geral da Justiça Global.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) declarou a petição admissível em 2008 e, em 2022, concluiu que o Brasil é responsável pela violação de direitos à vida, à integridade pessoal, à saúde, às garantias judiciais, à proteção judicial e aos direitos da infância, bem como por violações à igualdade e à não discriminação, incluindo a violência obstétrica.
Em março de 2024, a CIDH submeteu o caso à Corte IDH, destacando não somente a morte dos bebês, mas também os impactos devastadores sobre mães, pais e irmãos. O processo busca o reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado e a determinação de medidas de reparação integral, incluindo compensações às famílias, medidas de reabilitação, garantias de não repetição e o fortalecimento de políticas de saúde neonatal no Brasil.

O julgamento ocorre em um contexto em que o país, apesar de avanços, ainda apresenta desigualdades profundas no acesso à saúde materno-infantil. Em 1996, ano dos fatos, a taxa de mortalidade neonatal era de 22,23 por mil nascidos vivos — acima da média latino-americana à época. A precariedade estrutural, a desigualdade racial e territorial, a falta de leitos e o descaso institucional contribuíram para um cenário de mortes evitáveis, que poderiam ter sido prevenidas por políticas de saúde adequadas e fiscalização efetiva.

Para as mães de Cabo Frio, protagonistas dessa luta, a audiência representa um marco histórico. O testemunho ecoa o sofrimento e a busca por justiça de dezenas de famílias que há quase três décadas enfrentam negligência estatal.
“Acho que se eu tivesse deixado ela na minha barriga, de repente ela estaria viva até hoje”, recorda A.O.A.N., mãe de uma das crianças vitimadas, que prefere não se identificar.
Direitos da Convenção Americana de Direitos Humanos violados
Para a Justiça Global, com base na Convenção Americana de Direitos Humanos, houve violação:
- ao Direito às Garantias Judiciais e à Proteção Judicial com relação ao Direito à Saúde e à obrigação de respeitar (artigos 8 e 25 da CADH com relação aos artigos 1.1, e 26 do mesmo instrumento, considerando ainda a Devida Diligência em casos envolvendo o Direito à Saúde, do Prazo Razoável e do direito à verdade;
- ao direito das crianças e dos direitos da infância (artigos 19 e 26 da CADH) em relação à obrigatoriedade de respeitar os direitos (artigo 1.1 da CADH)…. 144
- ao Direito à Igualdade e Não Discriminação em relação aos Estereótipos de Gênero (artigos 1.1 e 24 da CADH), incluindo a violação dos Direitos das Mulheres em estado de pós-parto e à igualdade perante a lei, com relação ao artigo 1.1 da CADH e o artigo 7 da Convenção de
Belém do Pará; - ao Direito à Integridade Pessoal (artigo 5 da CADH, em relação com 1.1).
Medidas de compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição
A expectativa da Justiça Global e familiares é que a Corte IDH reconheça as responsabilidades do Brasil e determine obrigações concretas de reparação, com impacto não apenas para as vítimas diretas, mas para o fortalecimento das políticas públicas de saúde e de proteção à infância em todo o país.
Além de indenização por danos morais aos familiares das crianças e a garantia de atendimento psiquiátrico e psicológico, a peticionária solicita medidas de satisfação, como a publicação da sentença nos canais do governo federal, uma cerimônia pública em Cabo Frio para destacar o reconhecimento do Estado das violações declaradas e a construção do memorial “Mães de Cabo Frio” na cidade, em memória da luta das famílias.
A organização pede ainda uma série de medidas de não repetição, os quais:
- a construção de um Centro de Referência em Cabo Frio, para a promoção dos direitos humanos (destacadamente, em defesa dos direitos das mulheres e da infância);
- a elaboração de um marco legal sobre violência obstétrica no país; a qualificação da coleta e da alimentação de bancos de dados relativos a óbitos infantis e neonatais, com especial foco na superação das desigualdades regionais e locais das informações disponíveis;
- a exigência de que profissionais médicos e de enfermagem cumpram o dever de notificar adequadamente os agravos, além de adequado preenchimento de atestados de óbito, prontuários e outros documentos médicos;
- a ampliação do horário de funcionamento da Ouvidoria do SUS; o monitoramento do cumprimento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC), com a implementação de um mecanismo de controle de aplicação da regulamentação relacionada ao funcionamento das unidades neonatais e pediátricas;
- a promoção e difusão em todos os níveis profissionais do atendimento de estudos sobre as melhores práticas a serem adotadas em unidades neonatais;
- ações para enfrentar as iniquidades no atendimento à saúde reprodutiva, materna e neonatal, considerando-se aspectos socioeconômicos, raciais, de gênero e de território;
- a exigência que as Comissões de Controle de Infecção Hospitalar divulguem relatórios periódicos sobre ações e situações nos hospitais, incluindo a publicação em local visível ao público de cada unidade sobre sua aprovação pela comissão;
- o aperfeiçoamento da gestão de leitos neonatais, garantindo disponibilidade a uma distância mínima da residência das gestantes, em número adequado à população e com especial atenção para a questão do transporte (privilegiando o deslocamento da gestante e evitando transferência da criança); aperfeiçoamento da gestão de leitos neonatais, garantindo disponibilidade a uma distância mínima da residência das gestantes, em número adequado à população e com especial atenção para a questão do transporte (privilegiando o deslocamento da gestante e evitando transferência da criança);
- o aprimoramento, em todos os serviços de saúde, dos protocolos para garantir comunicação clara e eficiente entre os serviços de saúde, os pacientes e seus familiares, assegurando que as informações sobre diagnóstico, tratamento e encaminhamentos sejam apresentadas de forma adequada, transparente, em momento oportuno e acessível, respeitando o nível de compreensão de cada paciente;
- a garantia de que pacientes e familiares possam ter acesso ao próprio prontuário e exames do atendimento em momento oportuno;
- o avanço nas políticas de atenção integral à saúde materna para o cuidado de mulheres puérperas, garantindo apoio psicossocial para a sua recuperação emocional e da saúde física, e da capacitação dos profissionais de saúde para lidar adequadamente com essas situações;
- a promoção de campanhas educativas para conscientizar sobre os direitos das mulheres no período pós-parto, fortalecendo a humanização do atendimento e assegurando que elas sejam ouvidas e respeitadas como protagonistas de suas escolhas e necessidades de saúde;
- a adoção de medidas eficazes para erradicar, em todos os segmentos dos serviços públicos, mas sobretudo em unidades de saúde, a discriminação com base em estereótipos de gênero, raça e classe, em especial, mulheres que são mães;
- o aprimoramento de políticas de qualidade do cuidado e segurança do paciente, tornando a existência de grupos de trabalho técnicos para esse assunto em cada unidade de saúde obrigatória e mais eficaz;
- a ampliação, para tornar mais eficaz, o funcionamento das Comissões de Mortalidade Materna e Infantil; e
- a promoção de formação contínua para trabalhadores/as da saúde sobre infecção hospitalar.