
A audiência será realizada na Corte Suprema do Paraguai, em Assunção, a partir das 8h30 (horário do Brasil e no Paraguai). A Justiça Global vai retransmitir o anúncio em seu canal no YouTube.
Em 26 de setembro, próxima sexta-feira, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) analisará o Caso Mães de Cabo Frio vs. Brasil, envolvendo a morte de 96 bebês em Cabo Frio (RJ) nos anos 1996–97. Esse julgamento ultrapassa o mérito jurídico e alcança a raiz do problema: a persistente negligência estatal diante da saúde materno-infantil no país. Novos dados preliminares da pesquisa Nascer no Brasil II (2020–2023), da Fiocruz, evidenciam que essa negligência continua presente, em moldes distintos, mas igualmente graves.
Mortalidade neonatal: um problema persistente
O coeficiente de mortalidade infantil é reconhecido como um dos principais indicadores de qualidade de vida. Ele reflete não somente as condições da saúde materna e neonatal, mas também a capacidade do Estado de oferecer políticas eficazes de prevenção, assistência e vigilância.
No Brasil, houve queda expressiva nas últimas três décadas, mas a mortalidade neonatal — óbitos até o 27º dia de vida — segue representando a maioria da mortalidade infantil. Em 1996, ano da tragédia da CLIPEL, a taxa era de 22,23 por mil nascidos vivos, superior à média latino-americana de 19,05. Em 2022, caiu para 8,57 por mil, mas o país ainda respondeu por 27% das mortes neonatais em toda a América Latina. A maioria desses óbitos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), é evitável.
Desigualdades regionais e raciais
A redução da mortalidade não ocorreu de forma homogênea. Na Região dos Lagos do Rio de janeiro, onde ficava a CLIPEL, persistem vazios de assistência, baixa cobertura da atenção primária e distribuição desigual de leitos de UTI neonatal. Municípios como Cabo Frio, apesar de concentrarem infraestrutura regional, registram índices de mortalidade infantil superiores aos de cidades vizinhas com menor densidade populacional.
As disparidades também se expressam em termos raciais e sociais. Crianças pretas e pardas continuam mais vulneráveis a morrer antes de completar um ano, resultado de condições socioeconômicas adversas, mas também do racismo institucional no acesso ao sistema de saúde. Mulheres negras, por exemplo, relatam maior peregrinação entre maternidades, menos oferta de anestesia em partos vaginais e piores experiências de cuidado, marcadas por desrespeito e discriminação.
O estudo Nascer no Brasil II, conduzido entre 2020 e 2023 pela Fundação Oswaldo Cruz, é o maior inquérito nacional sobre perdas fetais, partos e nascimentos. Com base em dados de 465 maternidades das cinco regiões do país, a pesquisa aponta:
- Persistência de diferenças territoriais na atenção e nos desfechos neonatais;
- Piores indicadores para mulheres pretas, incluindo maior ausência de pré-natal, menos boas práticas no parto e maior exposição a maus-tratos;
- Elevadas taxas de intervenções desnecessárias, em especial, cesarianas, que chegaram a 88% no setor privado (dado já identificado pela primeira edição do estudo);
- Relatos significativos de violência obstétrica, depressão pós-parto e prejuízos no vínculo mãe-bebê.
Estrutura precária e falhas de segurança do paciente
O Caso Mães de Cabo Frio também ilustra a fragilidade da estrutura hospitalar no Brasil nos anos 1990, marcada As mortes na CLIPEL decorreram de um surto de infecção hospitalar na UTI neonatal, consequência de más práticas de higiene e da ausência de protocolos de segurança. O episódio ilustra as fragilidades da rede hospitalar brasileira dos anos 1990 — e, em certa medida, ainda atuais.
A distribuição de leitos de UTI neonatal permanece desigual, concentrada nas regiões mais ricas, deixando vazios assistenciais no Norte e Nordeste. Mesmo após a criação de protocolos pela Anvisa em 2010, muitos serviços de saúde ainda não cumprem padrões mínimos de controle de infecção e de vigilância epidemiológica, expondo mães e bebês a riscos evitáveis.
Estudos nacionais também associam a mortalidade neonatal a fatores como prematuridade, baixo peso ao nascer, ausência de partograma, peregrinação entre maternidades e falta de acompanhante no parto — falhas que ecoam diretamente as negligências da CLIPEL.
Violência obstétrica e desafios do parto no Brasil
O julgamento revisita ainda o problema da violência obstétrica, termo que abarca desrespeito, abuso, maus-tratos e intervenções sem consentimento durante a gestação e o parto. O Brasil tem um dos maiores índices de cesarianas do mundo (57,6% em 2022), reflexo da cultura de medicalização excessiva que coloca em risco mães e bebês.
As mulheres negras e pobres são as mais afetadas, relatando abandono, humilhação e negligência. A pesquisa Nascer no Brasil II reforça esse quadro: mulheres pretas são as que menos recebem boas práticas de cuidado no parto e as que mais sofrem com barreiras de acesso e maus-tratos.
O SUS e o papel da saúde privada
Outro aspecto central revelado pelo caso é a relação entre público e privado na prestação de serviços de saúde. A CLIPEL era uma clínica privada conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS). A ausência de fiscalização e de mecanismos de responsabilização pelo Estado escancara as fragilidades desse modelo de contratualização, que até hoje expõe usuários a riscos quando não há controle efetivo de qualidade sobre prestadores privados.
Referências internacionais
Enquanto isso, práticas internacionais de referência apontam caminhos distintos. Modelos adotados na Europa e em países latino-americanos como Chile, Cuba e Uruguai mostram que investimento em prevenção, protocolos baseados em evidência, formação de profissionais e cuidados centrados na família são capazes de reduzir significativamente as taxas de mortalidade neonatal. A OMS recomenda a integração entre gestação, parto, nascimento e acompanhamento neonatal como eixo fundamental para garantir o direito à vida desde os primeiros dias.
A relevância do julgamento
O julgamento do Caso Mães de Cabo Frio é histórico não apenas pela busca de justiça às famílias, mas também pela chance de a Corte IDH exigir que o Brasil adote medidas estruturais de não repetição. Entre elas, destacam-se:
- Implementação de protocolos de segurança do paciente em UTIs neonatais e maternidades;
- Fortalecimento da atenção primária e da infraestrutura neonatal, com foco na equidade territorial;
- Enfrentamento da violência obstétrica, com práticas baseadas em evidências e humanização do parto;
- Políticas antirracistas que reconheçam e corrijam as desigualdades vividas por mulheres negras;
- Fiscalização eficaz de prestadores privados conveniados ao SUS, com mecanismos de responsabilização.
Para as mães, pais e irmãos das crianças vítimas o Caso Mães de Cabo Frio, o julgamento representa a chance de transformar dor em justiça e legado. Para o Brasil, significa o reconhecimento de que vidas perdidas por falhas evitáveis não são meras estatísticas, mas sim lembretes de que o direito à saúde é indivisível e precisa ser respeitado em sua plenitude.
A audiência na Corte IDH é, portanto, uma oportunidade histórica de garantir que tragédias como a de Cabo Frio não voltem a se repetir e que o país avance rumo a um sistema de saúde materno-infantil mais seguro, equitativo e humano.