
Estado brasileiro é réu em caso de mortes de recém-nascidos em clínica conveniada ao SUS entre 1996 e 1997. A audiência foi realizada na última sexta-feira (26) na Corte Suprema do Paraguai, em Assunção.
“O que a gente quer é humanidade, é ser respeitada, é ter nossos filhos e ser abraçada dentro de um hospital. Essa causa é de todas as mães que têm um sonho de ter um filho, chegar a um hospital e ser bem recebida, de ser bem tratada, e de sair dali com seu filho nos braços para poder cuidar”.
O depoimento de Helena Gonçalves dos Santos, durante a audiência do Caso Mães de Cabo Frio vs. Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), realizada na última sexta-feira (29), traduz a extensão da dor que a falta de justiça pode perpetuar — mesmo 30 anos depois.
Helena foi uma das dezenas de gestantes que deram entrada no Hospital Irmandade Santa Isabel, em Cabo Frio (RJ), entre 1996 e 1997, para realizar o parto. Como ela, muitas saíram sem seus bebês. Ao menos, 96 crianças morreram vítimas de uma mesma infecção hospitalar, todas internadas na UTI Neonatal da Clínica Pediátrica da Região dos Lagos (Clipel), unidade privada conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Na audiência, Helena falou em nome de outras mães e pais, denunciando as tentativas de culpabilização que sofreram ao longo dos anos, marcando o componente de discriminação de gênero que atravessou o processo. “Nós fomos caluniadas, acusadas de sermos nós quem contaminou nossos filhos, de que nós causamos a morte deles”, protestou. Ela relatou o impacto profundo da violência e da perda não apenas em sua saúde mental, mas também na forma como viveu as gestações e a criação dos filhos seguintes.
Outro pai, Cesar Alejandro Nicolás Éboli, destacou que os próprios familiares tiveram de assumir o papel de investigação que cabia ao Estado: “Fomos nós que tivemos que coletar exames, procurar laboratórios, reunir antibióticos. Chegamos a descobrir um padrão de mortes porque até o vendedor da funerária nos alertou que estavam morrendo muitos bebês naquela UTI”.
Para Daniela Fichino, diretora-adjunta da Justiça Global, a audiência marcou um ponto fundamental na luta por justiça: “Foi um momento muito doloroso, com uma carga de emoção imensa, em que mães e pais puderam dar seus testemunhos de quase 30 anos de luta. Foram eles que protagonizaram todo um processo investigatório para descobrir que as violações que sentiam em suas vidas eram, na verdade, uma grande violação de direitos humanos”.
À Corte, a advogada descreveu um padrão de violações que incluía a negativa sistemática de informações às famílias, negligência no atendimento neonatal, ocultação de diagnósticos, adulteração de registros, e, sobretudo, a recusa do Estado a intervir diante de um cenário claramente epidêmico. E ressaltou a vulnerabilidade das mães, muitas das quais eram jovens (algumas com menos de 18 anos), e como elas receberam poucas ou nenhuma informação sobre a condição de seus filhos, descobrindo os óbitos por terceiros.
A audiência gerou grande repercussão na imprensa, que recuperou outros graves e recentes episódios do Rio de Janeiro de negligência e falta de fiscalização nos serviços de saúde, especialmente nos estabelecimentos privados conveniados, como órgãos com HIV, morte por ácido em hemodiálise. Para a Justiça Global, o fortalecimento do SUS mediante financiamento adequado, transparência e regulação rigorosa é uma “garantia de não repetição indispensável”. Fichino abordou a vulnerabilidade estrutural do modelo de saúde conveniado (SUS/Clínicas privadas), onde a falta de fiscalização permite que a rede privada se torne uma “zona de risco invisível ao controle público,” o que viola o direito à saúde.
Estado reconhece parcialmente violações, mas limita responsabilidades
Na audiência, o Estado brasileiro reconheceu solenemente a ocorrência de violações de direitos humanos, mas ressaltou que os fatos ocorreram antes do marco temporal de 10 de dezembro de 1998, quando o Brasil aceitou a jurisdição contenciosa da Corte. A delegação brasileira contou com representantes do Ministério das Relações Exteriores, AGU, Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Ministério da Saúde e Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro.
Mas a Justiça Global enfatizou que o padrão de violações persistiu ao longo do processo judicial. Fichino leu trechos da sentença criminal de 2003, onde a saúde reprodutiva de Marcela Éboli (mãe de Nicolas) era estigmatizada (mencionando aborto espontâneo e gravidez anembrionária) para desqualificá-la e argumentou que a absolvição dos médicos em segunda instância (TJ-RJ) foi baseada na “ausência de materialidade,” o que significa que o acórdão negou a própria ocorrência dos fatos, e não apenas a culpa dos réu
A perita Maria de Lourdes Oliveira, indicada pelo Estado, confirmou a gravidade das falhas, reconhecendo que a Clipel funcionava sem licença e sem inspeção prévia, e que na época não havia sistema estruturado de vigilância sanitária. Ela rejeitou de forma categórica a prática de culpar as mães: “A responsabilização da própria paciente pela ocorrência de uma infecção não se justifica, não é aceitável”.
O Estado reconheceu violações à proteção da criança e ao direito à vida (artigos 4º e 19, combinados com 1.1) e ao direito à igualdade e não discriminação (art. 24). O pedido formal de desculpas foi feito em respeito à memória dos recém-nascidos falecidos e à verdade buscada por seus familiares.
No entanto, argumentou que as garantias judiciais e a proteção judicial foram devidamente oferecidas, afirmando que a justiça atuou de forma diligente, apesar do resultado. Destacou que a absolvição dos médicos, em 2003, ocorreu por falta de provas específicas de culpa (in dubio pro reo) e por ausência de comprovação de nexo causal entre a conduta dos réus e as mortes.
A Justiça Global, que acompanha o caso desde 2024, criticou a postura brasileira: cordial no tom, mas limitada na substância. Para Daniela Fichino, o reconhecimento foi “insatisfatório diante da dimensão da violação”, tanto no impacto sobre os projetos de vida das famílias quanto nas falhas de investigação e responsabilização.
Segundo Fichino, a estratégia do Estado pareceu ser a de “fazer com que as coisas pareçam resolvidas, sem que nada mude de fato”. Daniela lembrou ainda que a busca por um acordo após a marcação da audiência, depois de 27 anos de silêncio, soou como uma tentativa de “desmobilizar quase três décadas de luta por justiça”.
Helena resumiu a negligência: “Até hoje ninguém nunca nos ofereceu um suporte. Todas as portas em que batemos pedindo ajuda, mostrando provas, nos foram negadas”.
O Estado também questionou o reconhecimento dos irmãos dos bebês — nascidos antes ou depois — como vítimas da tragédia. Mas Daniela destacou que o impacto sobre eles é crucial para a proteção da integridade familiar: “Os irmãos nascidos depois chegaram a lares devastados pelo luto, marcados por instabilidade emocional, cicatrizes invisíveis e pela consciência precoce de que o Estado falhou”.
A diretora-adjunta reforçou ainda que houve violação às garantias judiciais quando “o Estado transferiu, na prática, a tarefa de investigar aos próprios familiares”. Pais e mães tiveram que coletar nomes, cruzar dados em cartórios, pedir laudos, recolher exames e montar planilhas — trabalho que deveria ter sido conduzido pelas autoridades.
Expectativa por justiça e verdade
Para a Justiça Global, embora nada repare a perda, espera-se que a Corte IDH reconheça de forma ampla: a violação do dever de investigar; as falhas nas garantias judiciais; o direito à saúde; e a integridade familiar.
Após a audiência, Daniela Fichino concluiu: “É preciso que seja dito o que aconteceu em Cabo Frio em 1996 e 1997 sem diversasões ou histórias mal contadas. Só assim essas famílias poderão, enfim, descansar”.
Agora, tanto a Justiça Global quanto o Estado brasileiro têm até 28 de outubro para apresentar alegações finais. Após esse prazo, os juízes elaborarão seus votos e a sentença será anunciada em momento posterior.
Helena Gonçalves dos Santos resumiu o sentimento coletivo das mães: “Chegar até aqui já é uma vitória. Não representamos só a nós, mas todas as mães que perderam seus filhos nessa situação”.
Crédito da capa: Clarice Lissovky/Justiça Global.