Carta pública assinada por 27 organizações denuncia uso ilegítimo da força pelo Estado, racismo estrutural na política de segurança e responsabiliza o governador Cláudio Castro por adotar uma doutrina de guerra como modelo de gestão. A Operação Contenção, realizada nesta terça-feira (29), nos Complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte da cidade do Rio, deixou mais de 60 mortos.
Uma carta pública assinada por 27 organizações de direitos humanos, entre elas a Justiça Global, repudia a operação policial realizada nesta terça-feira (28) nos Complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, que já deixou ao menos 64 mortos — configurando a ação mais letal da história do estado. O documento denuncia o uso ilegítimo da força letal e o avanço de uma política de segurança baseada na guerra e no extermínio da população negra e pobre das favelas.
Conforme o documento, o governador Cláudio Castro repete e aprofunda o padrão de violência que caracteriza sua gestão, responsável por quatro das cinco operações mais letais da história do Rio de Janeiro — superando recordes anteriores registrados na Vila Cruzeiro (2021) e no Jacarezinho (2022).
“O que o governador classifica como a maior operação da história do Rio é, na verdade, uma matança produzida pelo Estado brasileiro”, afirmam as organizações. Segundo o texto, Castro chegou a solicitar blindados do Exército e tratou a operação como um “estado de defesa”, confirmando a adoção de uma doutrina de guerra como política de Estado.
As entidades destacam que essa lógica não reduz o poder das facções criminosas, mas aprofunda a insegurança e o medo, paralisa o cotidiano das comunidades e impõe o terror como expressão do poder estatal. “A morte não pode ser tratada como política pública”, diz a carta.
O texto também critica o ataque do governador à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 635, conhecida como ADPF das Favelas, e às organizações que atuaram por sua implementação. Ao culpar a decisão judicial pela letalidade das operações, o governo tenta deslegitimar o controle das polícias e a atuação da sociedade civil na defesa do direito à vida.
A carta aponta ainda que Cláudio Castro atuou para enfraquecer a ADPF 976, no Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de liberar as forças de segurança de obrigações legais como o planejamento prévio e a preservação de vidas. Paralelamente, manteve a lógica de premiação pela morte ao sancionar a gratificação por “bravura” na nova Lei Orgânica da Polícia Civil, substituindo a antiga “gratificação faroeste”, amplamente rejeitada pela sociedade.
“Premiar o confronto e a morte estimula a mentalidade de guerra e transforma comunidades em campos de batalha, onde moradores são tratados como inimigos internos”, afirmam as organizações.
Violação dos parâmetros internacionais sobre uso da força
O documento cita o Manual sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Agentes da Segurança Pública, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), que estabelece os princípios de legalidade, necessidade, proporcionalidade, precaução e responsabilidade. As organizações afirmam que as operações do Estado do Rio de Janeiro violam todos esses parâmetros e configuram uso ilegítimo e sistemático da força letal.
“O que o governador chama de segurança é, na verdade, um projeto político de extermínio travestido de combate ao crime”, destaca a carta. “Essas ações aprofundam a insegurança e o medo, interrompem o cotidiano de milhares de famílias e impõem o terror como expressão de poder estatal.”
O posicionamento relembra que o Rio de Janeiro já foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos — pelas chacinas de Acari (1990) e Nova Brasília (1994 e 1995) — e continua a reproduzir o mesmo padrão de violência. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que, entre 2014 e 2024, 5.421 jovens de até 29 anos foram mortos em intervenções policiais no estado.
As organizações apontam que o cenário atual é o ápice da necropolítica, em que o Estado substitui a segurança pública baseada em direitos por ações militares de grande escala, voltadas ao terror e à autopromoção política. Sob o pretexto da “guerra às drogas”, instalam-se estados de exceção permanentes voltados contra a população negra e pobre das favelas.
Diante da gravidade da situação, as entidades exigem que o governo abandone imediatamente a mentalidade de guerra e a lógica de ocupação militar nas comunidades, e que o Ministério Público e o Judiciário investiguem e responsabilizem os envolvidos — inclusive o governador — pela promoção de políticas que violam a legalidade e os direitos humanos.
O documento também reivindica a revogação das gratificações que premiam a letalidade policial e o cumprimento integral da decisão do STF que determina a elaboração e implementação do Plano Estadual de Redução da Letalidade Policial.
“A segurança pública deve garantir direitos, não violá-los. As moradoras e os moradores das favelas têm direito à vida, à integridade física e à paz — e isso não é negociável.”
Assinam a carta
Associação de Amigos/as e Familiares de Pessoas Presas e Internos/as da Fundação Casa — Amparar, Anistia Internacional Brasil, Casa Fluminense, Centro de Estudos de Segurança e Cidadania — CESeC, Centro pela Justiça e o Direito Internacional — CEJIL, CIDADES – Núcleo de Pesquisa Urbana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Conectas Direitos Humanos, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional — FASE RJ, Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Frente Estadual pelo Desencarceramento — RJ, Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares — GAJOP, Grupo Tortura Nunca Mais — RJ, Iniciativa Direito Memória e Justiça Racial, Instituto de Defensores de Direitos Humanos — DDH, Instituto de Estudos da Religião — ISER, Instituto Papo Reto do Complexo do Alemão, Instituto Sou da Paz, Instituto Terra Trabalho e Cidadania — ITTC, Justiça Global, Movimento Unidos dos Camelôs, Movimentos, Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luiza Mahin, Núcleo de Estudos e Pesquisa Guerreiro Ramos – Negra-UFF, Observatório de Favelas, Plataforma Justa, Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Rede Justiça Criminal, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares — RENAP RJ, Redes da Maré.
Foto da capa: Fernando Frazão/Agência Brasil.