A madrugada do Dia dos Direitos Humanos no Brasil

Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados - Direitos humanos sendo desrespeitados.
Opnião | Por Daniela Fichino*

Nas primeiras horas do Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, enquanto o país dormia, a Câmara dos Deputados aprovou uma versão repaginada da anistia aos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 — justamente aqueles que atentaram contra os próprios poderes da República. Se há símbolos que condensam um tempo histórico, este é um deles: no silêncio forçado pelo esvaziamento do plenário e pela truculência policial, avançou um projeto que corrói o pacto democrático erguido desde 1988.

A sessão que antecedeu a votação foi marcada por episódios que, até ontem, seriam considerados impensáveis dentro da vida parlamentar do período democrático brasileiro. Policiais legislativos agrediram deputados e deputadas em pleno exercício de suas prerrogativas, suprimindo não apenas a livre manifestação de representantes eleitos, mas a própria integridade física de quem ousou resistir ao atropelo procedimental. Jornalistas também foram hostilizados e empurrados, num ataque direto à liberdade de imprensa que ecoa os piores momentos da história recente. A violência institucional, mais do que um desvio, tornou-se método.

É nesse ambiente que se vota o projeto apelidado, com cinismo calculado, de “dosimetria”. Longe de estabelecer regras gerais e impessoais para o sistema penal, como sugeriria o nome, o texto opera com precisão cirúrgica: altera tipos penais específicos relacionados aos crimes contra o Estado Democrático de Direito para produzir efeitos concretos sobre um grupo determinado de réus. Trata-se, portanto, de um emprego deturpado e instrumental do processo legislativo, que disfarça como reforma penal aquilo que é, no fundo, uma anistia seletiva. Uma anistia destinada a absolver, por via oblíqua, aqueles que atentaram contra a democracia que todos temos o dever de proteger.

A incoerência é ainda mais gritante diante do histórico recente da própria Câmara. Semana após semana, tramitam e são aprovados projetos que endurecem a política criminal, restringem progressões de regime, esvaziam direitos de pessoas privadas de liberdade e alimentam o encarceramento em massa. Fecharam as portas da saída temporária; ampliaram penas em um rol cada vez mais extenso de crimes; fixaram percentuais de cumprimento de pena que, na prática, transformam sentenças em prisões perpétuas informalizadas. Para jovens negros e pobres, a lei é uma máquina de moer vidas. Para quem conspirou contra o Estado, abre-se a porta da indulgência.

Além disso, a atual maioria parlamentar tem recorrido de forma absolutamente perene às sessões extraordinárias, abrindo e encerrando trabalhos em sequência apenas para renovar artificialmente a ordem do dia e impor votações relâmpago, sem debate e sem transparência. Soma-se a isso o uso indiscriminado do regime de urgência, que elimina a participação social, esvazia as comissões temáticas e reduz o próprio papel dos parlamentares a um gesto protocolar de apertar botões. Trata-se de uma captura deliberada do processo legislativo: tomaram de assalto a democracia aos nossos olhos, brandindo o Regimento Interno como escudo para transformar um golpe procedimental em questão “interna corporis”. O resultado é um Parlamento que opera cada vez mais à margem de sua função republicana, substituindo deliberação por atropelo e participação por silêncio forçado.

Esse cenário não é acidental, mas compõe um projeto político coerente. O país assiste a uma crise institucional sem precedentes desde a redemocratização. Na mesma noite em que a Câmara avançou sobre o Estado Democrático de Direito, o Senado aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição estabelecendo o marco temporal para demarcação de terras indígenas, matéria já julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e neste momento novamente submetida à Corte. A estratégia é transparente: sobrecarregar o sistema de freios e contrapesos mediante a produção contínua de normas incompatíveis com a Constituição, apostando que, pela quantidade, se naturalize o excepcional. Se tudo é inconstitucional, nada mais parece sê-lo.

Neste 10 de dezembro, data que deveria reafirmar compromissos históricos com a dignidade humana, a sociedade brasileira é convocada a uma reflexão urgente. A restauração da qualidade democrática das instituições passa pela participação popular real, pela retomada do controle social sobre o orçamento público, e, sobretudo, por uma agenda centrada em direitos, sem subterfúgios, casuísmos ou atalhos autoritários.

A democracia não cai de uma vez. Ela se esgarça aos poucos, em noites como esta. O futuro, porém, ainda pode ser reescrito, mas somente se reconhecermos, com clareza e coragem, o que está em jogo agora.

*Daniela Fichino é advogada e diretora-adjunta da Justiça Global.

 

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