COP30 em Belém: quando a força das ruas supera a paralisia das instituições frente à crise climática

Entre retrocessos oficiais e a força dos povos, a Justiça Global reafirma que não há clima sem direitos humanos

A COP30 terminou em Belém deixando claras duas certezas que atravessaram toda a conferência: o multilateralismo ainda respira, mas a crise climática corre muito mais rápido; e, mais do que nunca, é a mobilização popular — dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e movimentos sociais — que sustenta a esperança de um futuro possível. 

A conferência global mais importante sobre clima expôs os limites de um sistema de negociações paralisado pelo lobby corporativo e pela incapacidade dos países de enfrentar o cerne da emergência climática: a dependência de combustíveis fósseis. Mas revelou também a potência política de uma Amazônia viva e dos territórios que resistem.

Belém se tornou, por duas semanas, o centro do mundo. Ao receber chefes de Estado, especialistas, acadêmicos, movimentos sociais e organizações de todo o planeta, a capital paraense reafirmou que não há justiça climática sem Amazônia em pé e nem Amazônia em pé sem garantir os direitos de quem a protege. 

Os povos indígenas tiveram protagonismo inquestionável, colocando a demarcação de terras no coração da COP e celebrando a publicação de novas portarias demarcatórias no Brasil. A mensagem foi direta: proteger pessoas e territórios é proteger o clima.

No entanto, se as ruas e os espaços paralelos pulsavam vida, a conferência oficial seguiu marcada por impasses. A proposta de um “mapa do caminho” para eliminar gradualmente os combustíveis fósseis, defendida pelo Brasil e por países latino-americanos e africanos, foi diluída até desaparecer do texto final. 

O lobby das petroleiras, do agronegócio e da mineração mostrou mais uma vez sua força. A transição energética debatida na COP seguiu orientada mais pela expansão de megaprojetos do que pela necessária redução da produção e consumo de combustíveis fósseis. Nada que responda à urgência científica de abandonar o petróleo até 2040.

E enquanto Belém tentava respirar esperança, Brasília acenava na direção contrária: logo após o encerramento da COP, o Congresso Nacional derrubou vetos à lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, escancarando o avanço de pautas antiambientais no país. Um lembrete incômodo de que o maior conflito climático do Brasil não está entre nações — mas entre os territórios e sua própria elite política e econômica.

Apesar das patinações, do lado de fora emergia um horizonte muito mais potente: o da resistência territorial, da mobilização social e da construção de alternativas baseadas em democracia ambiental, direitos humanos, ancestralidade e justiça racial.

É neste contexto que a atuação da Justiça Global na COP30 tornou-se particularmente estratégica — articulando incidência política, defesa de direitos, produção de conhecimento crítico e fortalecimento das vozes que historicamente têm sido silenciadas.

A agenda da Justiça Global

Diante desse cenário, a Justiça Global chegou à COP30 com uma agenda ampla, crítica e profundamente conectada às lutas territoriais. A organização atuou simultaneamente na zona oficial da conferência, em espaços paralelos e em iniciativas conduzidas por movimentos sociais, redes internacionais e coletivos amazônicos.

Na Zona Verde (estande do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania), participou do painel “Por uma adaptação climática com Justiça e Direitos Humanos”, integrando discussões com Anistia Internacional Brasil, Conectas, ISA, Greenpeace, WWF e Geledés. A atividade reforçou a necessidade de políticas de adaptação que não reproduzam desigualdades e coloquem no centro comunidades que já vivem os impactos da crise, especialmente na Amazônia.

A Justiça Global também esteve presente no lançamento do Plano Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos, ao lado da ministra Macaé Evaristo e de organizações que atuam há décadas na defesa de pessoas ameaçadas por conflitos socioambientais. Em um país que permanece entre os mais perigosos do mundo para defensores ambientais, o tema ganhou destaque dentro e fora da COP.

Na Cúpula dos Povos, a participação foi intensa. A organização contribuiu para a atividade “A captura privada da transição energética”, discutindo como grandes corporações transformam a crise climática em oportunidades de negócio que violam direitos territoriais, especialmente em projetos de mineração, hidrovias, hidrelétricas e energia “limpa” de alto impacto. 

No debate “Vidas em Risco, Direitos em Luta — Estratégias de Proteção e Resistência dos Defensores Socioambientais”, a Justiça Global alertou para o avanço da violência contra pessoas defensoras e coletividades no campo e na floresta, reforçando o papel do Acordo de Escazú como ferramenta fundamental para garantir acesso à  informação e à participação e proteção.

A organização também esteve presente no painel sobre grandes obras de infraestrutura e violações de direitos, discutindo casos emblemáticos como o projeto Grão Pará-Maranhão e impactos em povos indígenas e comunidades tradicionais. E na Marcha Unificada por Justiça Climática, somou-se aos movimentos sociais que levaram milhares de pessoas às ruas de Belém para denunciar a captura corporativa das políticas climáticas e exigir justiça climática e respeito aos territórios.

Na COP do Povo, a Justiça Global integrou dois momentos centrais: o painel “Vidas em Defesa do Planeta: Escazú e a Urgência de Proteger Quem Protege”, reforçando a necessidade de ratificação plena e implementação do acordo no Brasil; . Ainda nesse espaço, participou do lançamento do relatório “Racismo Ambiental na Amazônia Urbana e Periurbana” da Plataforma DHESCA Brasil , que denuncia o racismo ambiental e as violações de direitos relacionadas aos processos de preparação da COP em Belém.

Na Casa das ONGs, as discussões giraram em torno de alternativas comunitárias para a transição justa e sobre as múltiplas formas de racismo ambiental que atravessam a vida na Amazônia. Já no Amazon Climate Hub, a Justiça Global contribuiu para o painel sobre mineração e justiça climática, trazendo denúncias envolvendo Belo Sun e Potássio do Brasil — projetos que violam direitos e ameaçam territórios inteiros.

Lançamentos da Justiça Global durante a conferência

A construção de conhecimento é parte fundamental da luta por justiça socioambiental. Durante a COP30, a Justiça Global lançou duas obras estratégicas, cada uma iluminando dimensões essenciais da crise climática e das estruturas de violência que atravessam o território brasileiro.

Em parceria com a Associação de Pesquisa Iyaleta, a Justiça Global lançou o quarto volume da Coleção Caminhos, “A Terra gira em torno do Eixo Imaginário: Escala Racial Global na Natureza Terra”, escrito pelo geógrafo Diosmar Filho. A obra questiona a própria arquitetura da geografia mundial ao confrontar o que o autor denomina Estado Racial brasileiro, recuperando narrativas negras de intelectuais como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura e Nêgo Bispo. O lançamento foi realizado em 15 de novembro no Laboratório da Cidade, de iniciativa do Instituto Clima e Sociedade, o Observatório Multidisciplinar de Mudanças Climáticas e o Laboratório da Cidade. 

O livro desmonta imaginários coloniais profundamente incorporados à ciência e à cartografia — incluindo a divisão entre Norte e Sul globais e a centralidade do meridiano de Greenwich — para propor uma leitura crítica da Terra a partir de epistemologias negras, afro-brasileiras e decoloniais. Ao reforçar o vínculo entre racismo, território, colonialidade e desigualdades climáticas, a publicação se integra à agenda da Justiça Global de denunciar como a produção do espaço no Brasil segue pautada pela expropriação, pela violência estatal e pela negação histórica de direitos às populações negras.

Durante a Cúpula dos Povos, o resultado de dois anos de investigação liderada pela Justiça Global, com trabalho de campo do jurista quilombola Danilo Serejo e texto do jornalista investigativo Felipe Duran foi apresentado ao público no Dossiê Grão-Pará Maranhão: direitos violados e lutar por justiça nos territórios do Maranhão”.

As conclusões são alarmantes: o porto previsto deve atingir mais de 80% de um dos territórios quilombolas impactados; os riscos de deslocamentos forçados, perda de modos de vida, violência territorial e devastação ambiental são profundos; o projeto tende a agravar emissões, desigualdades e conflitos, sendo mais uma “falsa solução” travestida de desenvolvimento.

O material foi apresentado em 15 de novembro na Cúpula dos Povos, em um debate sobre racismo ambiental, poder corporativo e os impactos destrutivos da atual política de infraestrutura e logística. O dossiê dá subsídio técnico e político para comunidades, movimentos sociais e organizações que resistem ao avanço do empreendimento no Maranhão.

Além disso, a Justiça Global lançou com parceiros: o relatório Missão Ambiental na Amazônia Urbana: Violações de Direitos Humanos na Preparação da COP-30 em Belém, da Plataforma Dhesca, a campanha da Aliança pela Volta Grande do Xingu contra a instalação da maior mina de ouro a céu aberto na Amazônia; da carta aberta “COP30: Uma transição só será justa se comprometida com a superação das desigualdades sociais e com a promoção da justiça ambiental”, Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA). 

Proteger quem protege é defender o futuro

Nos corredores da conferência, nos debates paralelos e, sobretudo, nas vozes dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, juventudes e movimentos populares, ecoou uma verdade incontornável: não há justiça climática sem a proteção das defensoras e defensores que enfrentam, cotidianamente, os maiores riscos para garantir que o planeta continue habitável.

O Brasil continua sendo um dos países mais letais para defensoras e defensores de direitos humanos em questões ambientais. Os assassinatos, ameaças, , criminalização  e ataques políticos revelam que a defesa da vida e do território é tratada como crime, enquanto megaprojetos devastadores seguem avançando em nome de um supost interesse público.

Por isso, a aprovação do Acordo de Escazú pela Câmara dos Deputados — às vésperas da COP30 — representou um marco histórico. Escazú é o primeiro tratado ambiental internacional que reconhece explicitamente a necessidade de proteger defensoras e defensores ambientais. Ele estabelece obrigações de transparência, participação social e justiça ambiental, e cria mecanismos para prevenir violações antes que elas aconteçam.

A conquista chega junto à assinatura do Decreto que institui o Plano Nacional de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PlanoDDH) pelo governo federal, após anos de mobilização da sociedade civil. A Justiça Global foi uma das organizações que atuaram ativamente na construção do plano.

Em workshop em sala temática da Zona Azul, realizado em 17 de novembro, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania apresentou um plano de aceleração de soluções “Proteção dos defensores ambientais do contexto da crise climática e da transição justa”. 

O recado é claro: se não protegermos quem protege a natureza e os direitos humanos, nenhum acordo climático terá o poder de impedir a escalada da devastação.

A força que vem da base

A participação da Justiça Global na COP30 conectou diretamente a crítica estrutural das injustiças ambientais com ações concretas de proteção, incidência e produção de conhecimento. A organização reforçou que:

  • proteger defensoras/es é condição de sobrevivência para os ecossistemas;
  • grandes projetos de energia, portos, ferrovias e mineração não podem seguir ignorando territórios e vidas;
  • racismo ambiental é uma engrenagem central na crise climática;
  • Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga e povos tradicionais devem ser protagonistas da transição justa;
  • democracia ambiental só existe quando comunidades têm acesso à informação, à participação e à justiça.

A COP30 deixou claro que, enquanto governos cedem à pressão de corporações e negociam passos tímidos, os povos que protegem a Amazônia seguem gerando as respostas mais potentes. As ruas de Belém mostraram que a luta popular, que é indígena, quilombola, ribeirinha, camponesa e urbana, é o verdadeiro bastião contra o colapso climático.

Porque, diante da paralisia internacional, é das comunidades, dos movimentos e dos territórios que está vindo o que há de mais concreto na defesa da vida. E é dali que seguirá vindo a única força capaz de enfrentar a crise climática com coragem, justiça e futuro.

A COP30 terminou, mas a disputa pelo futuro segue viva — nas aldeias, quilombos, periferias urbanas, rios, florestas e campos. E é por isso que proteger quem protege não é apenas uma política pública: é a base de qualquer esperança de um mundo menos desigual e climaticamente possível. 

E se proteger quem protege é condição para que territórios continuem existindo, também é verdade que o futuro exige que nossas instituições públicas, multilaterais e da sociedade civil estejam à altura desse desafio, firmes, democráticas, livres do conflito de interesse, comprometidas, corajosas e capazes de enfrentar os poderes que alimentam a crise climática e a violência nos territórios.

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