Estado brasileiro é julgado pela Corte Interamericana no caso do assassinato do trabalhador rural Antonio Tavares

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Ausência de responsabilização dos envolvidos e seletividade da justiça marcam o caso ocorrido em maio de 2000.

San José – Nos dias 27 e 28 de junho a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), irá julgar o Estado brasileiro pela omissão e não responsabilização dos envolvidos no assassinato do trabalhador rural Antonio Tavares e às lesões sofridas por 185 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) por parte de agentes da polícia militar, durante a repressão de uma marcha pela reforma agrária realizada em 2 de maio de 2000, na Rodovia BR-227, em Campo Largo (PR).
A audiência integra o 149ª Período de Sessão Ordinária da Corte IDH e acontece em San Jose, na Costa Rica, sede da Corte.  Na segunda-feira a audiência inicia às 17h30 e na terça-feira, às 11h (horários de Brasília), com transmissão ao vivo pelo canal da Corte IDH no YouTube e das organizações peticionárias do caso. Ainda que o caso não tenha ocorrido durante o  governo de Jair Bolsonaro, cabe à atual gestão responder  – enquanto Estado – ao julgamento.

Card-04-AntonioTavares-FeedO episódio é considerado pelo MST “um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra”. O assassinato de Antônio Tavares e as lesões corporais sofridas pelas demais vítimas permanecem impunes. Diante disso, em fevereiro de 2021 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) encaminhou o caso à jurisdição da Corte. As organizações Terra de Direitos e Justiça Global são as peticionárias da ação na Corte.

Desde 2014, os denunciantes originários do caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Terra de Direitos, Comissão Pastoral da Terra (CPT),  Justiça Global, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), e o Estado brasileiro iniciaram tratativas para tentar buscar uma solução, mas foram todas frustradas. Como todas as possibilidades no sistema de justiça nacional foram esgotadas, os peticionários solicitaram à CIDH que o caso fosse levado à Corte. Em fevereiro de 2021 a jurisdição da Corte Interamericana aceitou o caso.

Realizada em San Jose, a audiência contará com a participação presencial da viúva de Antônio Tavares, Maria Sebastiana, a da também vítima Loreci Lisboa. Além da escuta às vítimas, a Corte escutará na audiência as organizações peticionárias, peritos e o estado brasileiro. Com mais de uma centena de vítimas e testemunhas do caso, a Corte recebeu mais depoimentos escritos ao longo da semana.

O caso Antônio Tavares é o terceiro a ser analisado pela jurisdição da Corte Interamericana envolvendo trabalhadores rurais sem terra. Em 2009, a Corte considerou o Brasil culpado pela não responsabilização dos envolvidos no assassinato de Sétimo Garibaldi, agricultor morto em 1998 durante um despejo ilegal de um acampamento do MST, em Querência do Norte, também no Paraná. No mesmo ano, a Corte também condenou o Brasil pelo uso de interceptações telefônicas ilegais em 1999 contra associações de trabalhadores rurais ligadas ao MST, também no Paraná.

As organizações peticionárias do caso apontam que o tratamento do sistema de justiça brasileiro aos vários casos envolvendo trabalhadores sem-terra é parte estruturante de um sistema de justiça seletivo. “Há um padrão na atuação do sistema de justiça nestes casos: de um lado, falta de apuração dos casos de violência contra trabalhadores rurais sem-terra e, de outro, a ausência de responsabilização dos agentes da segurança pública sobre as violações. A luta pelo direito à terra deveria ser tratado como exercício da liberdade de expressão e, portanto, protegido. No entanto, é tratado como assunto de polícia. E os casos de violência policial comumente ficam na impunidade no Brasil” destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Camila Gomes.

Expectativa por justiça

Antonio Tavares

A família de Antonio Tavares espera que o julgamento do caso pela Corte resulte de fato, após 22 anos, em justiça. Isto porque não houve responsabilização dos envolvidos. “A família espera que haja justiça. Com relação à morte, a gente sabe que não tem retorno, mas que haja justiça na reparação à família, a esposa e filhos que ficaram jogados sem ter o companheiro. A indignação é tamanha, ele foi assassinato brutalmente”, destaca o irmão de Antônio Tavares. Para José Damasceno, da coordenação estadual do MST-PR, a audiência na Corte Interamericana é um oportunidade de “denunciar para o mundo o descaso do Estado brasileiro no trato com os movimentos sociais e a forma como agride e reprime aqueles que lutam legitimamente por seu direitos neste país. Por isso esperamos que seja feita justiça”.

A intensa violência empregada por agentes de segurança pública contra os manifestantes é emblemática sobre como o estado brasileiro trata quem reivindica direitos, destaca a integrante da coordenação nacional do MST, Ayala Ferreira. “O que ocorreu no Paraná expressa lamentavelmente o que ocorre contra trabalhadoras e trabalhadores que lutam por terra e reforma agrária no país, a violência direcionada do estado para coibir níveis de organização e de lutas em defesa da democratização da terra, da reforma agrária ou em defesa dos direitos das pessoas, sobretudo, as pertencentes às camadas populares”, afirma Ayala. “A luta não pára neste país de desigualdades, a esperança está nas pessoas que continuam a luta”, complementa Tavares irmão.

Para o presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e coordenador da Terra de Direitos, Darci Frigo, a realidade presente no contexto da intensa repressão aos manifestantes, em 2002, e os tempos atuais possuem forte conexão. “Estamos vivendo o pior momento de possibilidade de garantia de direitos de acesso à terra. Os órgãos responsáveis por regularizar áreas territórios quilombolas, fazer a reforma agrária ou demarcar terras indígenas estão proibidos pelo próprio presidente da república de exercitar comandos constitucionais que determinam a reforma agrária, titulação quilombola. Não há possibilidade concreta de avanço de direitos. Enquanto isso, no Congresso Nacional, há uma agenda de retirada de direitos. Essa combinação explosiva de ausência total de políticas sociais resulta, cada vez mais, em um ataque ao pacto constituinte de 1988”, conclui.

“Além da responsabilização e reparação às vítimas, o julgamento do caso na Corte IDH é uma oportunidade para buscarmos medidas para que novos casos de violência contra defensoras e defensores de direitos humanos não se repitam. Nesse sentido, as organizações peticionárias pedem que a Corte determine ao estado brasileiro mudanças na forma de investigação e processamento destes casos pelo nosso sistema de justiça, visto que a ausência de mecanismos que garantam, por exemplo, a participação das vítimas e familiares nas investigações contribuem para a impunidade da enorme maioria dos casos”, complementa a coordenadora da Terra de Direitos, Luciana Pivato. Ela ainda destaca que as organizações reivindicam na ação que sejam adotadas medidas de fortalecimento da Política de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.

Reivindicações

Além da adoção de medidas de justiça, reparação, memória e não repetição para os familiares de Antônio Pereira e para as 185 vítimas, as organizações peticionárias requerem que a Corte determine que o Estado brasileiro elabore e execute um Plano Nacional de Reforma Agrária, com recomposição orçamentária e destinação prioritária de terras públicas. Na gestão atual a rubrica destinada a política assegurada na Constituição Federal é de valor pouco maior a R$ 6 milhões, valor considerado irrisório.

As organizações ainda solicitam que a Corte determine ao Estado brasileiro a elaboração de de um Plano Nacional de Combate à Violência no Campo, com garantia de ampla participação da sociedade civil organizada, a rejeição a qualquer proposta de alteração da Lei nº 13.260/2016, conhecida como “Lei Antiterrorismo” e o compromisso pelo país  de alteração da cultura institucional autoritária e violenta ainda existente nas forças policiais, por meio de um plano de ação compatível com legislações internacionais sobre o tema, entre outros pedidos.

Responsabilização

Em 04 de maio de 2000, foi instaurado Inquérito Policial Militar para investigação da atuação dos agentes de segurança pública. Poucos meses depois, no dia 09 de outubro, o Ministério Público Militar emitiu um parecer favorável ao arquivamento dos autos. Já no dia seguinte, em  10 de outubro, mesmo dia que recebeu os cinco volumes do inquérito policial militar, o juiz militar determinou o arquivamento do caso, acolhendo o argumento de que os agentes agiram em consonância com “estrito cumprimento do dever legal”.

O Ministério Público Estadual, entendendo que se tratava de homicídio doloso, portanto, de competência da Justiça Estadual, ofereceu denúncia contra o policial Joel de Lima Santa Ana. No entanto, o Tribunal de Justiça, através de habeas corpus impetrado pelo réu, encerrou o processo criminal com o argumento de que o caso já havia sido arquivado pela Justiça Militar. A Procuradoria de Justiça não recorreu desta decisão. Com isso, os inquéritos de apuração dos responsáveis pelo assassinato de Antônio Tavares e agressões as 185 vítimas foram arquivados em todas instâncias e o policial foi absolvido.

A ausência de responsabilização dos envolvidos pelo Estado brasileiro foi objeto de denúncia, em 2004, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em seu Relatório de Mérito, proferido em 2020, a Comissão apontou que o Estado brasileiro não apresentou explicação que lhe permitisse considerar que a morte de Antônio Tavares resultou do uso legítimo da força. Pelo contrário, a CIDH ressaltou que – diferente do que o Estado argumenta – o tiro que causou a morte de Tavares partiu de um policial militar, que o referido agente não agiu em legítima defesa, mas sim para assustar os manifestantes e que o tiro foi disparado quando a vítima estava desarmada. A viúva e os filhos de Antônio Tavares ainda aguardam a indenização por danos morais e materiais.

Um dos destaques da ação em julgamento pela Corte Interamericana diz respeito à atribuição da justiça militar em julgar fatos dos agentes públicos contra civis. Sobre isso o advogado da Justiça Global, Eduardo Baker, destaca que “a justiça militar não pode julgar crimes de violações de direitos humanos, bem como não é admissível que a Polícia Militar investigue crimes cometidos pelos próprios agentes. Portanto, é urgente que seja revista a competência da Justiça Militar para garantir que nenhuma violação de direitos humanos seja investigada por órgãos militares ou julgadas pela justiça militar.”

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