A tortura não é um desvio, não é um “erro” isolado. É um projeto.
No Brasil, a tortura não é um desvio, não é um “erro” isolado. É uma continuidade histórica adaptada institucionalmente para ser comportada em qualquer tipo de governo pelos quais passamos, até a Democracia. Pessoas privadas de liberdade carregam no corpo as marcas da violência e as populações racializadas são mantidas como alvo preferencial da tortura.
Um crime que nunca terminou
A tortura é crime contra a humanidade. No Brasil, ela persiste como política de Estado. Não é um ato isolado de violência, mas um crime específico cometido por agentes públicos — policiais, agentes penitenciários, militares. É operada em uma lógica masculinista e racialmente determinada.
O que é tortura e por que é um crime específico?
Conforme o Decreto nº 98.386/1989 (Convenção Interamericana), tortura consiste em infligir intencionalmente sofrimento físico ou mental para diversos fins, podendo incluir atos que causem dor física ou sofrimento psíquico. A Lei da Tortura (1997) no Brasil define que agentes públicos que cometam tortura ou deixem de impedir são responsáveis por esse crime. É um crime de Estado: praticado, ordenado ou autorizado por funcionários públicos. Envolve uma arquitetura institucional, não apenas decisões pessoais.
Raízes históricas: dos grilhões às algemas
Nos porões dos navios negreiros e nos barracões da escravidão, a tortura era expediente cotidiano de dominação. Marcada pelas correntes, troncos, máscaras e grilhões. Hoje, ela aparece nas algemas coletivas ou utilizadas para provocar dor intensa, nas celas superlotadas, nos veículos de transporte de presos sem ventilação, na ausência de atendimento médico. Navios negreiros e prisões são elos da mesma corrente: espaços de tortura coletiva. Na escravidão: correntes, navios lotados, marchas forçadas, porões insalubres. Hoje: prisões em massa, viaturas superlotadas, cadeias abarrotadas, saúde negada.
Na escravidão: escorbuto, raquitismo, desnutrição, violência sexual, separação das famílias e das crianças, pessoas caçadas como animais, banzo. Hoje: tuberculose, hipovitaminoses, raquitismo, violência sexual, proibição de visitas, violência policial, falta de informação sobre filhos, depressão. A lógica é a mesma: administrar corpos negros pela dor, com cálculo útil do sofrimento.
Raça, gênero e classe: marcadoras e marcadas pela tortura
Mais de 70% da população prisional brasileira é negra. O racismo estrutura quem é considerado perigoso, descartável, punível. O racismo não é um desvio, mas uma arma ideológica e um mecanismo que fundamentou e mantém a sociedade brasileira. Se antes o negro foi tratado como mercadoria, hoje é transformado como inimigo a ser contido – morto ou aprisionado. Dessa forma, o Sistema de Justiça Criminal cumpre um papel de perpetuar o racismo.
A tortura deve ser lida a partir de lentes interseccionais. Enquanto elaborações seculares, as práticas de tortura tem sido incrementadas e mais sofisticadas. Ser mulher privada de liberdade carrega outros elementos de gênero no tipo tortura e maus tratos. Não raro são os casos em que gestantes e parturientes são tratadas como tão perigosas ao ponto de se exigir uso de algemas enquanto se está em trabalho de parto, bem como a imposição de sofrimento tal, a ponto de mulheres sofrerem aborto, sozinhas, em celas escuras.
Tortura como política de Estado
Não se trata de exceções, mas de práticas estruturais. Superlotação, ausência de saúde, torturas físicas, humilhações — tudo isso é gerenciado pelo Estado. A tortura se tornou difusa: não depende mais de um único carrasco, mas de um cotidiano organizado para desumanizar. Entre as formas de tortura, não apenas violência física, mas também negação de luz solar, ventilação, sanidade e exploração de trabalho com remuneração irrisória (ex: R$7/mês) — práticas que desumanizam e sofrem uma lógica racial.
O crime de tortura na lógica brasileira transcende a leitura do direito internacional, por aqui a tortura é vista como um castigo que pode ser aplicado em qualquer circunstância e não apenas por agentes de Estado (Lei n. 9455/97), mas também por agentes privados. Por aqui, a desumanização como regra, permite que pessoas negras, indígenas e até ciganas sejam torturadas como forma de punição pelas menores coisas como furtar chocolates em um supermercado.
Enfrentar o cárcere é enfrentar o racismo
O aprisionamento em massa é hoje uma das principais expressões do racismo no Brasil. Cada cela superlotada, cada prisão arbitrária, cada morte sob custódia é a continuidade de uma história de violência racial iniciada na escravidão. Combater a tortura, as más condições do cárcere e o encarceramento em massa é lutar contra o racismo em sua forma mais brutal. Enquanto o Estado organizar a vida e a morte a partir da cor da pele, não haverá democracia plena. A tortura no sistema prisional recai sobre a população negra como continuação da violência racial histórica
No contexto das lutas por direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, quem não está preso também sofre com a criminalização que desumaniza. Mulheres e meninas de todas as idades, quando em situação de acesso às instituições carcerárias têm sido frequentemente expostas a tratamento desumano, cruel e vexatório. Muitas, são expostas à violência sexual, tratada pelo eufemismo de “revista vexatória”. Agachamento, verificação de partes íntimas, desnudamentos e outras violências têm sido utilizadas como estratégias de subjugação, mas disfarçadas de “políticas de segurança”.
O que fazer diante disso?
O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) é composto, de modo permanente, pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN/MJSP). A Justiça Global compõe o CNPCT.
Apesar da determinação legal, a implementação dos mecanismos estaduais tem ocorrido de forma desigual entre os estados, com alguns criando seus sistemas nos anos seguintes à lei, enquanto outros ainda enfrentam dificuldades para estruturar e garantir o funcionamento desses órgãos.
Atualmente, entre os 27 Estados brasileiros, apenas oito possuem Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura (RJ, AC, RO, SE, PB, ES, MA, TO). O estado de São Paulo, por exemplo, que possui a maior população do país e um histórico de graves violações de direitos humanos, incluindo a prática de pena de fome em seu sistema carcerário, resiste em adotar uma politica efetiva de prevenção e combate à tortura. No momento, ainda não existe um Mecanismo Estadual de Combate e Prevenção à Tortura no Estado.
Para avançarmos, é urgente:
- Exigir a implementação do SNPCT em todos os estados.
- Reconhecer a tortura como prática estrutural ligada ao racismo.
- Mobilizar sociedade civil, movimentos negros, organizações de direitos humanos.
A tortura não acabou com a escravidão. Não acabou com a ditadura. Ela persiste — e persiste contra os mesmos corpos. Racismo e tortura caminham juntos no Brasil há 500 anos. É hora de quebrar essa corrente!