Brasil vai responder à Corte Interamericana por violar direito de mulher trans

Luiza Melinho teve negado seu direito de acesso à saúde e à cirurgia de afirmação de gênero em hospital universitário na cidade de Campinas (SP) entre 1997 e 2001.

O Estado brasileiro vai ao banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos por negar e violar o direito aos cuidados em saúde à cabeleireira Luiza Melinho, mulher transexual a quem foi negada a realização da cirurgia de redesignação sexual oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Entre os anos de 1997 e 2001, Luiza Melinho tentou sem êxito ser submetida ao procedimento no Hospital das Clínicas da Universidade de Campinas (São Paulo), ligado à rede SUS. Durante os sete anos seguintes, lutou para garantir seu direito perante o judiciário brasileiro, sem sucesso.

O caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2008 pelo advogado da vítima, Thiago Proença Cremasco. A Justiça Global, ao lado da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) e a ABMLBTI (Associação Brasileira Mulheres LBTI’s) são copeticionárias.

A CIDH reconheceu as violações e, após diversas oportunidades de manifestação e tentativas de reparação dos danos causados pelo Estado brasileiro ao longo dos últimos anos, decidiu levar o caso a julgamento na Corte pela falta de respostas efetivas do Brasil. A audiência ainda será marcada.

Este é o primeiro caso relacionado aos direitos de pessoas trans contra o Brasil e o primeiro da Corte relacionado à saúde dessa população.

Na audiência de mérito realizada em março de 2021, Luiza Melinho destacou que teve seu direito à saúde violado pelo Estado, quando lhe foi negada uma cirurgia de afirmação de gênero ou de redesignação sexual no SUS, ou seu custeio no sistema privado, fato que a impediu de ter uma vida digna e colocou em risco a sua integridade física. Ao longo de quase dez anos, Melinho sofreu com diversos impactos ao nível de saúde mental como depressão, ansiedade e tentativas de suicídio.

Para a CIDH, o Estado não garantiu o acesso à saúde de Luiza Melinho em igualdade de condições, o que foi demonstrado por meio dos obstáculos para acessar a cirurgia solicitada, como a escassez de estabelecimentos capazes de realizá-la, a distância geográfica e a morosidade no processo judicial.

“O Caso Luiza Melinho vs Brasil representa uma oportunidade para o Brasil avançar nas políticas públicas,destinadas à população transgênera, historicamente negligenciada e excluída do sistema de saúde. O sofrimento, mas também a coragem de Luiza Melinho em denunciar as violações a que foi submetida, pode significar uma conquista importante na garantia de direitos para a população trans e se refletir em jurisprudência para todo o continente americano”, comenta Sandra Carvalho, Coordenadora da Justiça Global.

Direito à diversidade sexual e de gênero como garantia de dignidade e bem-estar

Os peticionários argumentam que a vítima não teve acesso a recursos efetivos para garantir seus direitos e que, apesar dos avanços alcançados nos últimos anos em relação aos direitos da população LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e travestis, Queer, Assexuados, e outras dissidências) no Brasil, a situação das pessoas trans continua sendo preocupante e os serviços oferecidos precários e/ou ausentes em muitos estados da federação. 

O acesso ao processo transexualizador, seja pela terapia hormonal e/ou a cirurgias de afirmação de gênero, entre outros procedimentos, continua sendo um desafio para pessoas trans no Brasil – pela longa fila de espera, pelo limitado número de serviços, pela escassez de rede referenciada de atendimento, pela dificuldade no acesso às informações ou falta de profissionais preparados no acolhimento. 

No período de 2014 a maio de 2022, foram registradas apenas 233 cirurgias de redesignação sexual, de homens e mulheres transexuais, pelo SUS. Cabe destacar que o Brasil ainda não ratificou a atualização em 2018 da CID-11 (que retirou a classificação de doença da transgeneridade) ou mesmo a revisão do processo transexualizador a fim de adequar ao entendimento despatologizante os procedimentos previstos no protocolo de cuidados trans específicos.

Do total de 4.639 assassinatos catalogados pela Transgender Europe (TGEU) entre 2008 e setembro de 2022, 1.741 ocorreram no Brasil. Isto é, sozinho, o país acumula 37,5% de todas as mortes de pessoas trans do mundo, enquanto México tem 649 (14%) e os EUA 375 (8%) no mesmo período. O dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) com dados de 2022 informa que 131 pessoas trans foram assassinadas.

“O país naturalizou um processo de marginalização e precarização para a aniquilação das pessoas trans, especialmente contra as identidades transfemininas. Em um momento de organização e avanço, uma agenda anti-trans tem impulsionado a violência nas mídias socias e consequentemente no incentivo ao assassinato de pessoas trans, direcionando alvos e perpetuando o lugar subalterno em que a população trans foi historicamente colocada. E nesse sentido o estado tem sido completamente omisso ao negar o acesso a direitos básicos para essa população”, afirma Bruna Benevides, secretária de articulação política da ANTRA.

A defensora de direitos humanos destaca a apresentação de diversos projetos de lei que visam estigmatizar e criminalizar as existências trans, os retrocessos em políticas trans-inclusivas, o fortalecimento de discursos anticientíficos e a disseminação de narrativas que incitam o ódio através do medo sobre a população trans.

O caso

As recorrentes violações ocorreram a partir de 1997, quando Luiza Melinho buscou assistência médica e psicológica no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, que integra o Sistema Único de Saúde (SUS). Ela foi diagnosticada com depressão, tentativas de suicídio e “transtorno relacionado à identidade sexual”. 

Após diversas idas e vindas – incluindo um cancelamento da modificação de laringe e um pedido de seu ingresso no programa de “adequação sexual” por um médico psiquiatra -, o hospital passou a alegar que não tinha condições de fazer a cirurgia de redesignação sexual e a encaminhou para outra unidade, em outra cidade, onde teria de recomeçar todo o processo sob um importante custo financeiro pessoal.

“Durante todo o período, a universidade indicou que faria a cirurgia, criando grande expectativa em todo o grupo de usuários. Luiza e outras tantas pessoas de fato integravam esse programa de adequação sexual, mas que, ao final, não cumpriu a proposta”, afirma o advogado da vítima, Thiago Cremasco.

Na época, ela foi informada de que apenas cinco hospitais no país cumpriam os requisitos à época do Conselho Federal de Medicina e o mais próximo, da Universidade de São Paulo, já não tinha vagas disponíveis. Com um agravamento do quadro psíquico e diante da impossibilidade de um cuidado adequado, a vítima fez a cirurgia por conta própria em 2002.

A partir de então, Luiza Melinho passou a questionar – sem efeito – a não garantia de seus direitos perante o judiciário brasileiro, em um longo processo judicial que durou até 2008. Naquele ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou seu recurso, mesmo diante de outra decisão, do ano anterior, do Tribunal Regional Federal – 4a Região (TRF4), que incluía o procedimento de afirmação sexual como um dos procedimentos cirúrgicos que deveriam ser proporcionados pelo sistema público de saúde. 

No ano da última negativa de Melinho, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2008, o Ministério da Saúde publicou portaria em que garantia a cirurgia de redesignação sexual (CRS) na lista de procedimentos do SUS, sendo aplicada apenas a partir de 2013.

A busca pelo processo transexualizador é parte de um percurso de afirmação de modos de viver as identidades de gênero das pessoas trans. Os itinerários quase sempre são tortuosos, pelas dificuldades enfrentadas durante esse processo, dentre elas que as transfobias institucionalizadas trazem agravos na saúde dos indivíduos. A autorização de procedimentos para o processo transexualizador é altamente morosa, com grande fila de espera, resultando em um desestímulo à busca do protocolo, desistências ou não encaminhamento a unidades competentes para prosseguimento. A história dos procedimentos transexualizadores no Brasil é amplamente marcada pela judicialização da demanda.

Direitos violados

Para a CIDH, o Estado brasileiro é responsável pela violação de cinco direitos referidos na Convenção Americana de Direitos Humanos: à integridade pessoal; às garantias judiciais; à proteção da honra e da dignidade; à igualdade perante a lei; à proteção judicial e aos direitos econômicos, sociais e culturais.

A Comissão recomendou à Corte Interamericana que fossem reparados integralmente os direitos violados, incluindo uma indenização pelos danos e reembolso dos gastos médicos, assim como a disponibilização de medidas assistenciais em saúde física e mental para a reabilitação da vítima.

Além disso, a CIDH indicou que fossem adotadas medidas para evitar que situações similares se repitam no futuro, o que deve incluir a eliminação dos obstáculos nos protocolos de saúde que tornem ineficiente a prestação das cirurgias de afirmação de gênero, a garantia de que os recursos promovidos pela via judicial relacionados a cirurgias de afirmação sejam decididos de modo célere e a promoção da capacitação do pessoal médico que trata das pessoas trans, não binárias e de gênero diverso para garantir o acesso imediato a serviços de saúde de maneira não discriminatória.

Sobre o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos

A Organização dos Estados Americanos (OEA) é o principal fórum para diálogo, cooperação e tomada de decisões dos países do continente americano. A instituição conta com dois dispositivos para verificar o cumprimento das obrigações assumidas com a assinatura da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José): a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que tem a função executiva de promover e defender os direitos humanos, com o recebimento, a análise e o acompanhamento de comunicações interestatais e petições, além de produzir recomendações e indicar quando os casos devem ser levados à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH); esta, por sua vez, é o órgão judicial autônomo da OEA, com sede na Costa Rica, e que tem o propósito aplicar e interpretar o Pacto de San José e outros tratados de Direitos Humanos. O Estado brasileiro reconheceu a competência e a jurisdição obrigatória e vinculante da Corte IDH em 1998.

 

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