A institucionalização da tortura nos espaços de privação de liberdade

A tortura é inerente ao encarceramento, mas muitas vezes não são reconhecidas como tortura uma série de condições mantidas pelas estruturas físicas e administrativas das unidades prisionais.

Nos últimos 20 anos, a Justiça Global tem denunciado aos organismos internacionais de direitos humanos que a estrutura física das prisões tem sido fator fundamental para a imposição de sofrimento físico e psíquico às pessoas privadas de liberdade. Os prédios onde estão localizados estabelecimentos penais e socioeducativos são degradados e insalubres com mofo muitas vezes acumulado pela não incidência de luz solar, calor excessivo, falta de janelas e portas que permitam a circulação de ar, infiltrações, dentre outros problemas estruturais que têm sido denunciados como tratamento desumano, cruel e degradante. Tudo isso acrescido da superlotação, reconhecida como um problema crônico.

Os números estarrecedores produzidos por órgãos estatais como o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (1) já falariam por si. Mas os dados da realidade documentada in loco pelo trabalho de organizações da sociedade civil, órgãos estatais como as Defensorias Públicas, mecanismos estaduais e nacional de prevenção e combate à tortura (2), demonstram outros efeitos para além dos números: efeitos geradores de sofrimento físico e psíquico, assim como a aquisição de doenças e/ou piora no quadro de doenças preexistentes.

Algumas práticas administrativas e de gestão das políticas públicas relacionadas à execução penal e de medidas socioeducativas também são geradoras de sofrimento e de tratamento degradante, cruel e/ou desumano, configurando tortura. Os poucos recursos voltados à garantia de número suficiente de profissionais em todas as áreas, por exemplo, impactam diretamente no acesso a direitos como saúde e educação. Aponta-se aqui, o reduzidíssimo número de profissionais responsáveis pelo chamado “tratamento penal” – assistentes sociais, psicólogos, médicos, enfermeiros e dentistas – que compõem poucas equipes de trabalho e tem, na maioria das vezes, contratos de trabalho precários e pouco reconhecimento profissional.

A escassez em relação ao número de profissionais, bem como a falta de equipamentos de segurança, geram tipos diversos de sofrimento físico, psíquico e até morte, como quando o socorro em situação de emergência não é oferecido em tempo. Este foi o quadro que levou, por exemplo, à morte de Yasmin Pires Pessanha (21) e Grazielle Gomes Antunes (27). No dia 14 de abril de 2018, as duas tiveram cerca de 90% do corpo queimado em um incêndio no Presídio Nelson Hungria, localizado no Complexo Prisional de Gericinó, em Bangu, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Ambas estavam em uma cela de isolamento que foi tomada pelo fogo (3).

Por outro lado, como é possível identificar nas resoluções públicas da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação aos casos de violações no sistema prisional brasileiro, o número reduzido de profissionais expõe os presos a riscos diversos, inclusive o de sofrer torturas impetradas não somente pelos agentes, mas também por outras pessoas privadas de liberdade – como aconteceu no estado de Goiás em situação que foi inclusive filmada e transmitida via internet pelos próprios presos (4).

Algumas práticas administrativas de controle disciplinar também têm se apresentado como formas abusivas de imposição de sofrimento. A exemplo, em unidades prisionais femininas às quais a Justiça Global tem acesso durante processos de inspeção, as sanções disciplinares são utilizadas com muita frequência como instrumento abusivo de controle, quando as mulheres presas são ameaçadas de perderem benefícios como a visita periódica ao lar, ou de cumprirem mais tempo de privação de liberdade. Isto porque, de acordo com a legislação brasileira, sanções disciplinares podem implicar em impedimentos de progressão de regime. Esta tem sido uma das reclamações mais frequentes entre as mulheres e homens no sistema prisional em diversos estados brasileiros nos quais atuamos. A falta de profissionais que tenham conhecimento técnico para acompanhar, registrar e analisar o impacto das punições disciplinares no sofrimento psíquico de mulheres privadas de liberdade é também um fator que contribui para o ocultamento deste tipo de prática como tortura.

Como se sabe, a maioria absoluta de pessoas privadas de liberdade no Brasil é composta por pessoas negras. Isso implica a forma como as pessoas encarceradas têm sido tratadas. A tortura no Brasil é uma prática institucionalizada que remonta à colonização, à escravidão vigente entre os séculos XVI e XIX, que se reatualiza no período ditatorial, e torna-se parte da cultura institucional do sistema prisional e dos órgãos de segurança pública – isso sem contar os linchamentos realizados nas ruas todos os dias1 por pessoas comuns, ao “fazerem justiça com as próprias mãos”. Assim, importa considerar que a tortura integra uma racionalidade colonial que ainda rege as relações sociais no país – existiriam pessoas que “mereceriam” ser punidas de forma violenta, ou de forma que imponha o máximo de dor possível, mesmo que isso seja deixar alguém em cela escura por dias a fio.

Além do sofrimento físico de socos, chutes, choques elétricos e modos de gerar dor sem, contudo, tirar a vida, a tortura pode se materializar em uma série de práticas como a restrição de luz solar, a restrição de ar adequado para se respirar, o impedimento à liberdade depois de anos de encarceramento por excesso de sanções disciplinares, pela negação de informações sobre filhos pequenos, dentre tantas outras. Importante ainda, considerar, a dimensão temporal em relação à privação de liberdade – já diriam os Racionais MC’s: o relógio da cadeia anda em câmera lenta (6). Segundo nos relatam pessoas privadas de liberdade nas diversas unidades prisionais e do socioeducativo, o tempo passa de forma lenta, e a obrigatoriedade de “ficar sem ter o que fazer, trancada/o” é um dos grandes fatores de sofrimento. Ao contrário do que se diz no senso comum, a ruptura com atividades laborais, educativas, esportivas gera formas agudas de sofrimento.

Muitos dos casos aqui relatados e das constatações que derivam de nosso trabalho de monitoramento das violações de direitos humanos nos espaços de privação de liberdade guardam um certo descompasso em relação à configuração formal de tortura que se encontra nos entendimentos clássicos da jurisprudência. É, no entanto, imprescindível reconhecer que a imposição proposital de sofrimento a pessoas encarceradas como forma de punição é uma prática de tortura e precisa ser abolida. Por outro lado, enfrentar a tortura como prática cotidiana nas instituições é enfrentar outras mazelas históricas que nos assolam como nação, como é o caso do racismo.

(1) Para mais detalhes ver o Sistema de Coleta de Dados do DEPEN, SISDEPEN. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/sisdepen.
(2) Você já ouviu falar do Sistema de Nacional de Prevenção e Combate à Tortura?. Disponível em: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/456629325/voce-ja-ouviu-falar-do-sistema-nacional-de-prevencao-e-combate-a-tortura.
(3) Um cigarro aceso e duas mulheres carbonizadas no coração do sistema prisional do Rio. Disponível em:https://ponte.org/um-cigarro-aceso-e-duas-mulheres-carbonizadas-no-coracao-do-sistema-prisional-do-rio/.
(4) Preso é amarrado e torturado por outros detentos dentro de cela na cadeia de Inhumas. Disponível em: http://g1.globo.com/goias/videos/t/todos-os-videos/v/preso-e-amarrado-e-torturado-por-outros-detentos-dentro-de-cela-na-cadeia-de-inhumas/6795331/.
(5) Brasil tem um linchamento por dia, não é nada excepcional. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/09/politica/1436398636_252670.html. O tema é discutido ainda no documentário “A primeira pedra”, um filme produzido pela Couro de Rato, disponível em: http://www.futuraplay.org/serie/a-primeira-pedra/.
(6) Fragmento da música do grupo Racionais MC’s, Diário de um Detento, do álbum Sobrevivendo no Inferno de 1997.

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