Nota Pública do CNPCT – PL do Porte de Armas de Fogo no DEGASE/RJ

Manifestação de preocupação em relação ao Projeto de Lei Estadual n° 1825/2016, o qual autoriza porte de arma de fogo para agentes socioeducadores do DEGASE/RJ.

O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), órgão criado pela Lei Federal n° 12.847 de 02 de agosto de 2013, que institui o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Brasil e consagra o compromisso do Estado Brasileiro com o Protocolo Facultativo à Convenção sobre Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes da ONU (OPCAT), vem, através da presente Nota Pública, manifestar extrema preocupação com a tramitação do Projeto de Lei Estadual n° 1.825/2016, o qual autoriza o porte de arma de fogo para agentes socioeducadores do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), vinculado à Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Conforme comunicado recebido por este Comitê Nacional, tal Projeto de Lei poderá ser colocado em votação no mês de outubro de 2018 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ).

A justificativa de referido Projeto de Lei Estadual evoca a ampliação do rol taxativo do art. 6° da Lei 10.826/2003, o qual dispõe sobre as categorias e funções para quem o porte de arma de fogo é permitido no Brasil, especificamente faz-se referência à previsão de porte de arma de fogo para “agentes e guardas prisionais” e “integrantes das escoltas de presos”. Ocorre que a Resolução 119/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), em seu tópico 5.2.1.4., dispõe sobre as atribuições do socioeducador como aquelas referentes à preservação da integridade física e psicológica dos adolescentes e à realização de atividades de caráter pedagógicas, não tendo respaldo a redução das funções do socioeducador à “guarda e escolta prisional”, nos termos expressos na Lei 10.826/2003. Ademais, a Advocacia Geral da União, em Parecer N° 153/2018-SEI/CONJUR/MDH/CGU/AGU, o qual dispôs sobre a incompatibilidade do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) com o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), é contundente em assinalar a natureza eminentemente pedagógica e protetiva das medidas socioeducativas, não sendo concebível qualquer equiparação do atendimento socioeducativo com o escopo da segurança pública ou do sistema prisional no ordenamento jurídico brasileiro.

Como se não bastasse, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento recente (em agosto de 2018) da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 5010, decidiu, por unanimidade, que é de competência exclusiva da União legislar sobre questão relativa a material bélico, tornando inconstitucional qualquer legislação estadual que enseje a criação de nova hipótese de porte de arma de fogo não expressamente prevista no rol taxativo da Lei 10.826/2003. Logo, além de incompatível com os marcos nacionais e internacionais do atendimento socioeducativo, o Projeto de Lei Estadual n° 1825/2016 carece de constitucionalidade por não ser possível uma legislação estadual ampliar o escopo de matéria exclusivamente de competência da União. Ademais, as Regras das Nações Unidas para Proteção de Jovens Privados de Liberdade, em seu Artigo 65, veda a posse e o porte de armas para o pessoal responsável por estabelecimentos de privação de liberdade juvenil.

Ressalte-se, ainda, que o texto de justificativa do referido PL faz inadequadamente menção a episódios de violência e de ocorrências diversas nas dependências das unidades de internação como razão da suposta necessidade de porte de arma de fogo dos socioeducadores do DEGASE, mesmo o art. 1°, inciso IV do referido PL dispondo somente sobre o porte de arma em ambiente externo às unidades de atendimento socioeducativo. Conforme Nota conjunta do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro sobre o referido PL, “grande parte dos problemas vivenciados por socioeducadores poderiam ser solucionados mediante a redução da lotação das unidades – atendendo os padrões do SINASE -, atualmente superlotadas, e em permanente estado de tensão, e com a melhoria dos salários e das condições de trabalho destes profissionais”. Ademais, tal Nota evidencia o contexto impune de práticas reiteradas de tortura, violações de direitos humanos e mortes nas unidades de internação do estado do Rio de Janeiro, que afastam o atendimento socioeducativo do seu escopo pedagógico e reforçam a conflitualidade e os fatores de risco para adolescentes e profissionais no cotidiano das unidades.

Vale sublinhar que a Política de Atendimento Socioeducativo no Brasil tem como referência normativa os postulados consagrados na Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, no art. 227 da Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal 8069/1990), na Lei Federal 12.594/2012 (Lei do SINASE) e na Resolução 119/2006/CONANDA. Tais normativos instituem um sistema de responsabilização juvenil fundado na Doutrina da Proteção Integral, na prevalência intransigente do caráter pedagógico e restaurativo das medidas socioeducativas, no respeito à condição peculiar de desenvolvimento do/a adolescente e na garantia de seus direitos individuais e sociais. Há, deste modo, a consagração de um sistema de responsabilização de caráter eminentemente protetivo, em contraposição ao caráter eminentemente retributivo do sistema penitenciário.

Á vista do exposto, este Comitê Nacional manifesta sua preocupação e contrariedade ao Projeto de Lei Estadual n° 1825/2016, recomendando-se a sua rejeição pelo Poder Legislativo, por sua afronta aos marcos normativos nacionais e internacionais supracitados e à recente jurisprudência do STF no âmbito da ADI n° 5010, e insta a comunidade socioeducativa do estado do Rio de Janeiro, especialmente o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), e os/as Deputados da Assembleia Legislativa do Estado a refletirem prepositivamente sobre o atual contexto das unidades de atendimento socioeducativo do Estado, a partir sobremodo dos diagnósticos e recomendações do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ), buscando efetivar o caráter protetivo e pedagógico das medidas socioeducativas, a garantia dos direitos humanos dos/as socioeducandos e as condições de trabalho e segurança adequadas para todos/as os trabalhadores.

Brasília, 03 de outubro de 2018.

COMITÊ NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA – CNPCT

 

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