Organizações cobram Comissão da Verdade Indígena e denunciam crimes da ditadura na CIDH

A audiência integra o 193º Período de Sessões da CIDH e foi solicitada por 38 organizações da sociedade civil – entre elas, a Justiça Global, articuladas no Fórum: Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas.

As violações cometidas contra povos indígenas durante a ditadura militar no Brasil (1964–1985) foi tema de audiência pública articulada por um conjunto de organizações, movimentos sociais e entidades indígenas no último período de sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Com o tema “Brasil: situação das políticas de memória, verdade e justiça”, o encontro fez parte das ações do Fórum Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas, que tem como objetivo pressionar pela criação de uma Comissão da Verdade Indígena, que reconheça e repare oficialmente os crimes cometidos pelo regime militar contra povos originários. 

A audiência integra o 193º Período de Sessões da CIDH e foi solicitada por 38 organizações da sociedade civil brasileira, entre elas Justiça Global, OPAN, APIB, CIMI, ISA e parlamentares como Célia Xakriabá, Matheus Gomes e Daiana Santos. Também participam representantes do Estado brasileiro e do Escritório Regional para a América do Sul da ONU.

Com apresentações do Estado brasileiro, de representantes de diversos povos indígenas e da sociedade civil, a audiência durou cerca de uma hora e meia. 

Casos emblemáticos apresentados

Diversos povos foram citados como vítimas de violações sistemáticas e de longa duração. Entre eles:

  • Kajkwakhratxi-Tapayuna, Kayabi, Manoki e Myky (MT): quase 95% desses povos desapareceram, tendo sofrido com a perda de territórios e violência direta da ditadura, com envenenamento em massa e disseminação de doenças. Até hoje suas terras não foram dermarcadas.
  • Tuxá (BA): terras inundadas para construção de hidrelétrica; aguardam demarcação.
  • Avá Guarani (PR): território sagrado inundado pela hidrelétrica de Itaipu.
  • Pataxó Hã Hã Hãe (BA): remoções forçadas e confinamento para construção de fazendas.
  • Waimiri-Atroari (AM/RR): cerca de 3 mil pessoas assassinadas na abertura da BR-174 e construção da hidrelétrica de Balbina.
  • Yanomâmi (RR/AM): parte da população dizimada na construção da Perimetral Norte; atualmente sofrem com invasões garimpeiras.
  • Guaranis e Kaingangs (RS): ainda enfrentam arrendamentos das terras para a soja, trabalho análogo à escravidão e grupos vivendo em acampamentos à beira de estrada.
  • Guarani-Kaiowá (MS): deslocamentos forçados, assassinatos de lideranças e destruição de casas de reza.

Lideranças e juristas indígenas cobram responsabilidade do Estado

Dinamam Tuxá, advogado do povo indígena Tuxá e representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), lembrou uma série de violências da Ditadura com os indígenas: 

“Estamos falando de um estado que poluiu rios, espalhou sarampo e varíola e que até hoje não fez nenhuma reparação. Meu povo, Tuxá, perdeu as terras para a construção de uma hidrelétrica. Seguimos aguardando a demarcação. Os Avá Guarani, que tiveram seu território sagrado inundado para a construção da hidrelétrica de Itaipu, seguem em luta pela reparação integral. Os Pataxó Hã Hã Hãe foram removidos forçadamente, com uso da força policial, para a construção de fazendas, sendo confinados e vivendo até hoje em situação de grande violência. Quase 3 mil indígenas Waimiri-Atroari foram assassinados para a abertura de uma estrada da BR-174 e a construção da hidrelétrica de Balbina”, disse o jurista.

Ele destacou ainda o genocídio de parte do povo Yanomami, em Roraima, na construção da Perimentral Norte. “Hoje, mesmo com território demarcado, segue tendo suas terras invadidas pelo garimpo como na época da ditadura”, observou. E mencionou ainda o caso dos Guarani-Kaiowá como um dos mais urgentes, com deslocamentos forçados, lideranças assassinadas, destruição de casas de reza. “Tudo diante do silêncio de muitas instituições”, declarou.

O advogado também denunciou a imposção da chamada “assimilação”, imposta aos povos indígenas com um ‘gesto’ de inclusão. “Foi uma estratégia de destruição e extermínio, uma política de morte. Não estamos falando de séculos atrás, mas de uma ditadura ocorrida há 40 anos. Estamos falando de um Estado que envenenou rios, espalhou sarampo e varíola em comunidades inteiras. E até hoje não houve reparação alguma”.

Kajkwakhratxi-Tapayuna acompanharam audiência pública. Foto: Kátkrytxi Tapayuna (via Opan)

Já Maíra Pankararu, também advogada da Apib, destacou que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi importante para o reconhecimento dos indígenas como vítimas da ditadura e lembrou que foram deixadas 13 recomendações ao Estado brasileiro, entre elas a reparação territorial e a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade. “ A ditadura não acabou para os povos indígenas”, afirmou. “Nossos anciões guardam essas memórias vivas. Falar do passado é falar do presente e do futuro, por isso estamos aqui hoje, porque sabemos que não há democracia verdadeira onde a impunidade reina, onde os povos continuam invisibilizados, onde a terra, a vida e a espiritualidade são tratados como obstáculos ao progresso. Onde está o Estado que dizia nos proteger? Onde está hoje o Estado que deve reparar?”, questionou.

A representante da APIB ressaltou que comissões como a da Anistia e a de Mortos e Desaparecidos Políticos não reconheciam os povos indígenas como vítimas da ditadura, o que inviabilizou as políticas de memória e reparação. Contudo, essa exclusão começou a ser enfrentada com a divulgação do Relatório Figueiredo. Produzido pelo procurador Jader de Figueiredo Correia entre 1967 e 1968, o documento de mais de 7 mil páginas detalha as crueldades cometidas contra indígenas em todo o Brasil.

“Essa exclusão começou a ser enfrentada com a divulgação do Relatório Figueiredo, em 2012, documento de 1967 que revelou massacres, remoções forçadas, envenenamentos e massacres de crianças. Os povos indígenas eram vistos como ‘entraves ao desenvolvimento’. Essas violências foram praticadas sob esse contexto”, disse.

A representante da APIB destacou que, historicamente, comissões como a da Anistia e a de Mortos e Desaparecidos Políticos não reconheceram os povos indígenas como vítimas da ditadura, o que dificultou o avanço de políticas de memória e reparação. O Relatório Figueiredo foi produzido pelo procurador Jader de Figueiredo Correia entre 1967 e 1968. O documento, com mais de sete mil páginas, detalha as violências cometidas contra povos indígenas em diferentes regiões do país. Dado como perdido por mais de 40 anos, acreditava-se que havia sido destruído em um incêndio no Ministério da Agricultura. Mas foi encontrado pelo pesquisador Marcelo Zelic em abril de 2013, no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

A advogada Bruna Medeiros Bolzani, da Operação Amazônia Nativa (OPAN), destacou ainda violências sexuais contra mulheres indígenas, frequentemente acompanhadas de outras formas de violência. “O Relatório Figueiredo revela que o Estado adotou uma “lógica de guerra” contra os povos indígenas, utilizando estupros como mecanismos de dominação racial e colonial durante a Ditadura Militar’, afirmou.

“Marco Temporal chancela crimes da ditadura”, afirma procuradora aposentada

Juristas e representantes do sistema de justiça brasileiro também participaram do debate. Entre elas, a subprocuradora-geral da República aposentada Deborah Duprat, Ela destacou que mostraram que as recomendações da Comissão Nacional da Verdade (2014) não estavam sendo observadas, que não havia sido criada a Comissão Nacional Indígena da Verdade e que o Marco Temporal para a demarcação de terras é violador, pois chancela os crimes da Ditadura.

Reconhecimento oficial, mas pouca reparação

Em relatório publicado em 2024, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu que a ditadura foi responsável pelo genocídio de milhares de indígenas, em nome do desenvolvimentismo e de um projeto de “integração nacional”. Documentos revelam envenenamentos em massa, disseminação deliberada de doenças por expedições da Funai e ocupações forçadas de terras. Apesar disso, poucas ações de responsabilização e reparação foram implementadas. 

Segundo os representantes, “a Comissão Nacional da Verdade analisou apenas 10 povos e estimou 8.350 indígenas mortos no período. O próprio relatório afirma que esse número deve ser muito maior, considerando os mais de 300 povos existentes no país.

A vice-presidente da CIDH, Andrea Pochak, ressaltou a relevância da criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, que aprofunde o trabalho iniciado pela Comissão Nacional da Verdade. Para ela, o silenciamento e a falta de visibilidade das violações sofridas pelos povos indígenas explicam a persistência dessas violações até hoje.

Audiência foi articulada por três diferentes grupos

A atividade reuniu diferentes solicitações à CIDH para discutir o tema. Um articulado pela Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado Rio Grande do Sul, a partir do Conselho Nacional de Ouvidorias-Gerais Externas de Defensorias Públicas do Brasil (CNODP), em parceria com a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (ArpinSul); o Centro de Trabalho Indigenista (CTI); a Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara dos Deputados; a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos – Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul; a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY); o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH-RS); o Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul (CIMI-Sul); a Fundação Luterana de Diaconia (FLD); o Fórum Justiça no Rio Grande do Sul; a Justiça Global; a Operação Amazônia Nativa (Opan); a Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina; a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP); o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU da UFRGS); além de parlamentares como Célia Xakriabá (PSOL/MG), Matheus Gomes (PSOL/RS), Daiana Santos (PCdoB/RS), Renato Roseno (PSOL/CE) e Sofia Cavedon (PT/RS).

Você pode conferir a reunião completa em: Brasil: Situação das políticas de memória, verdade e justiça.

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