
Em audiência na Câmara, organizações e especialistas alertam que apenas sete unidades da Federação possuem mecanismos de prevenção e combate à tortura; Justiça Global denuncia mortes “naturais” em prisões e pede ação urgente do Legislativo e do Executivo.
Na última quarta-feira (6), a Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados sediou uma audiência pública dedicada ao fortalecimento e à valorização dos mecanismos de combate à tortura no Brasil. Reunindo parlamentares, especialistas, organizações da sociedade civil e representantes de órgãos de fiscalização, o encontro buscou debater estratégias e apontar caminhos para enfrentar uma prática que, apesar de proibida pela Constituição e por tratados internacionais, ainda persiste de forma sistemática em espaços de privação de liberdade.
O deputado federal Reimont (PT-RJ), autor do pedido de realização da audiência, abriu os trabalhos relembrando o assassinato de Jeferson de Souza, de 24 anos, morto por policiais militares no centro de São Paulo, mesmo estando rendido. O caso, gravado por câmeras corporais que teriam sido manipuladas, serviu como exemplo da urgência de mecanismos independentes e eficazes de fiscalização.
“Não se trata apenas de combater a tortura física, mas também de enfrentar a cultura de violência e impunidade que a sustenta”, ressaltou o parlamentar.
O papel e a importância dos mecanismos
Instituídos para inspecionar espaços como presídios, unidades socioeducativas, hospitais psiquiátricos, instituições de longa permanência e comunidades terapêuticas, os mecanismos de prevenção e combate à tortura têm prerrogativa de acesso irrestrito, documentam violações e emitem recomendações para corrigir abusos. Seu funcionamento está previsto na Lei 12.847/2013 e no Protocolo Facultativo à Convenção da ONU contra a Tortura (OPCAT), ratificado pelo Brasil em 2007.
Entretanto, somente sete estados (Rio de Janeiro, Rondônia, Maranhão, Paraíba, Sergipe, Espírito Santo e Acre) contam com mecanismos estaduais, e mesmo esses enfrentam graves problemas de estrutura e autonomia. Em muitos casos, há apenas dois ou três peritos para fiscalizar todo o território, com salários baixos e sem recursos básicos como câmeras fotográficas ou veículos.
Para Viviane Martins Ribeiro, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), o enfraquecimento deliberado dessas estruturas é um problema central: “Estamos encontrando mecanismos estaduais fragilizados por políticas elaboradas para limitar sua atuação. Precisamos de legislação e estrutura compatíveis com o modelo da ONU, com peritos independentes, bem remunerados e equipados para exercer suas funções. (..) Os mecanismos documentam violações, emitem recomendações e trazem à luz crimes que ocorrem em espaços blindados por muros e grades. Mas sem investimento, essa política não se concretiza”.
Experiências e desafios nos estados
A experiência do Rio de Janeiro foi citada como exemplo positivo por diversos participantes, graças à forte participação da sociedade civil e à vinculação direta à Assembleia Legislativa, o que garante maior fiscalização do Executivo. A perita Vanessa Figueiredo Lima destacou que o mecanismo fluminense atua com equipe multidisciplinar, mandatos fixos, equilíbrio de gênero e representação étnico-racial, realizando visitas regulares e não anunciadas. “Sem fiscalização independente, a tortura se perpetua, silenciada e invisível. Precisamos criar mecanismos nos estados que ainda não têm e fortalecer os que já existem, garantindo autonomia política, orçamentária e funcional”, afirmou.
No entanto, em outros estados, o cenário é crítico. Em Pernambuco, o mecanismo foi desmontado e substituído por um órgão criado ilegalmente. No Espírito Santo, o órgão opera sem estrutura mínima e com remuneração insuficiente. No Maranhão, apenas duas peritas fiscalizam todo o sistema prisional, incluindo o complexo de Pedrinhas, já denunciado internacionalmente. No Ceará, peritas selecionadas legalmente ainda não foram empossadas.
Wilma Melo, do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (SEMPRI/PE), denunciou: “Precisamos de uma política nacional como a da saúde, com fundos específicos. O mecanismo é indispensável, mas está sendo fragilizado por quem deveria fortalecê-lo”.
O Rio de Janeiro foi pioneiro na criação de um mecanismo estadual em 2010, fruto da pressão da sociedade civil. Vanessa Figueiredo Lima, perita do Mecanismo do RJ, explicou: “Temos acesso irrestrito, mandato fixo e equipe multidisciplinar, mas ainda enfrentamos falta de orçamento e reconhecimento. Sem autonomia, a tortura se perpetua invisível”. Patrícia Oliveira, do Comitê Estadual do RJ, destacou a importância da participação social: “Famílias de vítimas da violência policial e do sistema prisional fortaleceram nossa atuação. O comitê do RJ é o único vinculado à Assembleia Legislativa, o que garante maior independência”.
Justiça Global alerta para mortes “naturais” no cárcere
Representando a Justiça Global, Monique Cruz reforçou que a tortura não se limita a agressões físicas, mas inclui tratamentos cruéis e degradantes que passam muitas vezes despercebidos pela definição jurídica tradicional. Um exemplo são as chamadas “mortes naturais” no sistema prisional, que podem esconder negligência grave ou violência. “Entre 2018 e 2023, no Complexo Prisional do Curado (PE), registramos 245 mortes, muitas atribuídas a causas naturais como hipovitaminose, mas também homicídios e casos de corpos incinerados. Sem fiscalização, essas mortes permanecem invisíveis”, denunciou.
Monique também ressaltou a importância de proteger defensoras e defensores de direitos humanos que atuam contra a tortura e sofrem ameaças, criminalização e deslegitimação.
Chamados à ação
A audiência resultou em um conjunto de pedidos concretos aos Poderes:
- Criação de mecanismos em todos os estados, com legislação própria e garantias de autonomia e recursos;
- Política nacional de fomento, com metas e orçamento federal para impulsionar a implementação e fortalecer estruturas existentes;
- Destinação de emendas parlamentares para equipar e qualificar a atuação dos órgãos;
- Vedação à participação de forças de segurança nos comitês e mecanismos, preservando a independência e para evitar conflitos de interesse;
- Proteção e valorização dos peritos, com remuneração adequada, equipamentos de trabalho, previdência especial e condições de trabalho seguras;
- Cumprimento das decisões internacionais, como as sentenças da Corte Interamericana sobre Pedrinhas (MA) e Curado (PE).
Para Sylvia Diniz Dias, da Association for the Prevention of Torture (APT), o momento é decisivo: “Temos menos da metade dos estados com mecanismos em funcionamento, muitos deles enfraquecidos. A prevenção à tortura só é possível com condições materiais, técnicas e humanas adequadas.”
A prevenção como política pública essencial
Diversos participantes lembraram que o Plano Pena Justa, voltado a enfrentar a crise do sistema prisional, prevê a criação de mecanismos em todo o país. Para Jacque Cipriany, do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, essa é uma das melhores políticas públicas já implementadas:
“O mecanismo dialoga com familiares, com a sociedade civil e com quem está na linha de frente, muitas vezes sob risco. Ele dá voz a quem é silenciado e precisa ser protagonista na construção de políticas. Ouve quem está na ponta, nas celas superlotadas. Sem ele, o Estado só reproduz violência”;
A audiência encerrou-se com o compromisso de ampliar a mobilização para que os mecanismos de prevenção à tortura não sejam apenas estruturas formais, mas instrumentos eficazes, respeitados e capazes de promover dignidade, justiça e direitos humanos em todo o Brasil.
Ao final, a deputada Érika Kokay (PT-DF), reforçou os pedidos apresentados: “Sem os mecanismos estaduais, é impossível que você consiga fazer uma inspeção em um país que tem tanta naturalização da tortura. Não é apenas que a tortura faz parte do país. São quase 400 anos de tortura explícita na história do Brasil. Ou seja, da escravização. E com tantos anos de ditadura militar e sem ter feito luto delas. Não fechamos ciclos nem do colonialismo, nem da escravização, nem da ditadura, que são processos de tortura, que significa a desumanização. E quem desumaniza também se desumaniza”. A parlamentar finalizou propondo um grupo de trabalho para encaminhar as questões apresentadas.
Assista à gravação completa da audiência: