
Evento paralelo à 60ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, reuniu especialistas, defensoras e representantes de mecanismos nacionais e internacionais de prevenção à tortura e de enfrentamento ao racismo.
Mais de três décadas após o Massacre do Carandiru, as marcas do racismo e da tortura seguem profundas na atuação das forças de segurança e nas estruturas do sistema prisional brasileiro. Essa foi a principal conclusão do evento paralelo “Da polícia às prisões: enfrentar o racismo e a tortura para defender os direitos humanos no Brasil”, realizado durante a 60ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no Palácio das Nações, em Genebra, no último dia 2 de outubro.
O encontro buscou chamar a atenção da comunidade internacional para as dimensões históricas e sistêmicas da violência racial e discutir caminhos para fortalecer a responsabilização do Estado brasileiro.
Para Monique Carvalho Cruz, coordenadora do programa de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global, o racismo é o eixo central para compreender o descompromisso histórico do Estado brasileiro com a vida das populações negras e indígenas. “A política de segurança pública no país é estruturada sobre a produção de morte” afirmou.

No evento, Monique Cruz destacou que, naquele dia, completavam-se 33 anos do Massacre do Carandiru, quando 111 homens foram assassinados em 1992 durante uma rebelião em uma unidade prisional em São Paulo.
Para Cruz, a extinção das penas contra os policiais em 2024 é símbolo da persistência da impunidade em casos de execuções e tortura praticadas por agentes estatais.“Essa decisão reafirma o lugar da vida negra como descartável”, concluiu.
A assessora legal da Associação para a Prevenção da Tortura (APT) no Brasil, Silvia Diniz, lembrou observou que o racismo e a tortura estão expressos no sistema de justiça criminal, na atividade policial e no sistema prisional. Ela lembrou que pessoas negras representam 68% da população carcerária e têm 3,5 vezes mais chances de serem mortas por agentes de segurança, dados que revelam um padrão de violência seletiva.
Violações cotidianas nos espaços de privação de liberdade
Coordenadora do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – MNPCT, Viviane Martins Ribeiro informou que houve registro de privação alimentar em todos os estabelecimentos penais visitados em 2024. “A tortura não é um resquício do passado, mas uma prática sistemática e racializada. O uso abusivo de armas menos letais, choques elétricos e sufocamentos é recorrente”, afirmou.
Viviane destacou ainda que apenas 8% das unidades prisionais inspecionadas garantem acesso à Defensoria Pública. “Sem acesso à Justiça, a denúncia se torna impossível. A ausência de resposta estatal consolida a tortura como política de gestão carcerária”.
Os familiares das pessoas privadas de liberdade também tem seus direitos violados, é o que lembrou Priscila Serra, presidenta da Associação Entre’Elas, denunciado a criminalização de familiares e defensoras, e o tratamento degradante imposto às mulheres visitantes, submetidas a revistas vexatórias e uniformes obrigatórios. “A família também cumpre pena. E o racismo define nosso destino: ou morremos, ou somos encarcerados.”
Perita da ONU em justiça racial defende medidas internas para enfrentar problema
A especialista Tracie Kesse, do Mecanismo Internacional Independente de Peritos para o Avanço da Justiça e Igualdade Racial (Emler), apresentou as conclusões do relatório elaborado após a visita da missão ao Brasil em 2023, enfatizou que o racismo distorce todas as etapas do sistema de justiça, desde a abordagem policial ao julgamento.
Kesse destacou que mais de 80% dos erros judiciais afetam pessoas negras, enquanto apenas 14% do Judiciário é composto por magistrados negros. “A criminalização da população afrodescendente (negra) é uma forma de limpeza social, legitimada pela política de guerra às drogas e pelo uso excessivo da prisão e da força letal”, afirmou.
Ela defendeu a adoção de avaliações de impacto racial, coleta de dados desagregados e investimento em soluções comunitárias como caminhos para reduzir a violência e o encarceramento.
Fortalecer mecanismos de prevenção deve ser compromisso de Estado
Encerrando o debate, Rogério Guedes, perito do MNPCT, reforçou a necessidade de fortalecer os mecanismos nacionais de prevenção e de garantir que o Brasil cumpra os pactos internacionais de direitos humanos que já ratificou.
O evento reafirmou o consenso entre os participantes: o racismo é a raiz da tortura e da violência institucional no Brasil, e enfrentá-lo exige medidas urgentes, integradas e com participação ativa da sociedade civil.
Também do MNPCT, Viviane apelou para que o Brasil implemente as recomendações do MNPCT, do Comitê contra a Tortura e do Emler, lembrando que a falta de efetividade dessas medidas mantém o ciclo de violações.
“Não há combate real à tortura sem enfrentar o racismo estrutural que organiza o sistema de justiça brasileiro”, resumiu Monique Cruz.
Assista o evento na íntegra no YouTube da Justiça Global.