Abril Indígena: Protocolo de Consulta Prévia do povo indígena Pury completa um ano de luta por reconhecimento

Documento fortaleceu o direito à autodeterminação e foi decisivo para o reconhecimento das comunidades Pury como atingidas pelo rompimento da barragem em Mariana.

Em abril de 2024, o povo indígena Pury da comunidade Txeminára Uchô Betlháro, localizada em Aimorés, no Leste de Minas Gerais, apresentou ao público e às instituições brasileiras o seu Protocolo de Consulta Prévia e Informada.

Ao longo desse primeiro ano, o documento foi peça central na luta pelo reconhecimento das comunidades indígenas Pury como atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana–MG, e na construção de caminhos próprios de participação no processo de reparação da bacia do Rio Doce.

O protocolo foi construído a partir do diálogo entre a comunidade e a assessoria técnica, que envolveu Associação de Remanescentes Indígenas Pury de Aimorés (ARIPA) com o apoio do Movimento Ressurgência Puri (MRP) e da AEDAS (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social).

Protocolo de Consulta da Comunidade Indígena Uchô Betlháro Purí.

E consolidou-se como instrumento central de afirmação da identidade Pury e do direito de serem consultados sempre que decisões externas afetarem suas vidas, seus territórios ou seus direitos.

O Protocolo é baseado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tratado internacional ratificado pelo Brasil, que reconhece o direito de povos indígenas e comunidades tradicionais à consulta prévia, livre e informada em todas as medidas administrativas ou legislativas que possam afetá-los.

No caso do povo Pury, esse direito foi sistematicamente desrespeitado desde o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana–MG, em 5 de novembro de 2015. A estrutura é administrada pela empresa Samarco, uma joint-venture entre a Vale S.A. e a anglo-australiana BHP. 

Comunidade ndígena Uchô Betlháro Purí. Crédito: Cleiton Santos/Aedas.

Mesmo impactados pela lama tóxica da barragem — que percorreu mais de 650 km pela bacia do Rio Doce até o oceano —, os Puri só passaram a ser reconhecidos como atingidos no processo de repactuação da Vale, firmado no ano passado. 

Assim, por quase nove anos, eles ficaram de fora dos programas de reparação conduzidos pela Fundação Renova, criada pelas mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton para gerir a reparação dos danos causados.

Neste período, o povo Pury permaneceu invisibilizado, sem acesso a medidas emergenciais como auxílio financeiro, fornecimento de água, atendimento à saúde ou reconhecimento formal da tradicionalidade indígena. 

Veja a nota da Justiça Global: Repactuação do Rio Doce: por que o acordo bilionário não promove a reparação integral

A exclusão se dava não apenas por omissão, mas como parte de um processo mais amplo de racismo ambiental e estrutural. Como apontam movimentos sociais e instituições de assessoria técnica como a AEDAS, a gestão da reparação ignorou sistematicamente povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e populações rurais do Leste de Minas. 

A ausência de consulta e participação dos afetados foi uma marca de todo o processo, levando à criação de comissões locais sob imposição judicial, sem respeitar a organização própria dos territórios.

Foi nesse contexto que o povo Pury decidiu construir seu próprio caminho. A elaboração do Protocolo de Consulta foi uma resposta direta à tentativa de silenciamento e apagamento. Ele define, com base na cultura, história e organização social dos Pury, como deve se dar qualquer diálogo ou decisão sobre suas vidas. E mais do que isso: afirma que os Pury existem, resistem e exigem respeito.

O documento também teve papel estratégico no prPostocesso político. Apresentado a parlamentares, instituições de justiça, órgãos públicos e representantes do sistema de governança da reparação, o Protocolo foi fundamental para pressionar pela inclusão do povo Pury no novo acordo de reparação assinado em 2024. 

Por meio dele e da articulação conjunta com outras comunidades do Médio Rio Doce — como quilombolas de Sapê do Norte, de Povoação e de Santa Efigênia, faiscadores e garimpeiros da região —, foi possível construir uma frente comum por justiça e reconhecimento.

O resultado mais concreto veio no segundo semestre de 2024. Em setembro, o Comitê Interfederativo (CIF), órgão responsável por orientar e fiscalizar a atuação da Fundação Renova, reconheceu oficialmente o povo indígena Pury das regiões de Aimorés e Resplendor como impactado pelo rompimento da barragem de Fundão. 

Saiba mais: Abrindo Diálogos Vol. 3 – periódico de direitos humanos: O desastre-crime na barragem do Fundão: uma análise sobre as violações de direitos humanos, a luta das comunidades atingidas e a busca por justiça socioambiental

Evento de lançamento do protocolo. Foto: Thiago Matos/Aedas.

A deliberação n.º 811/2024 determinou uma série de medidas urgentes: cadastramento das famílias, acesso ao auxílio subsistência emergencial, fornecimento de água potável e início imediato de estudos de impacto para elaboração de planos de reparação específicos.

Além disso, foi determinado que esses estudos sejam conduzidos por consultorias independentes com perícia técnica e legitimidade junto aos povos indígenas. O CIF também comunicou às instituições de justiça a necessidade de criar assessorias técnicas específicas para os povos indígenas da região, conforme prevê a Convenção 169 da OIT.

Esse reconhecimento representou um passo histórico para o povo Pury. Durante décadas, sua presença no Leste de Minas foi invisibilizada pelas políticas públicas e pela atuação de grandes empreendimentos. 

O processo de mapeamento conduzido pela AEDAS revelou a existência de três comunidades indígenas Pury nos municípios de Aimorés, Resplendor, Itueta e Conselheiro Pena: Txeminára Uchô Betlháro, Ã Pukiu e Krim Orutum Puri. Essas comunidades enfrentam, além dos danos do rompimento, os impactos cumulativos de projetos como barragens, hidrelétricas (como a Usina de Aimorés), estradas e mineração.

Novo acordo alcança novos povos e comunidades tradicionais

Conforme lista disponibilizada pela União Federal, antes da repactuação, estavam inclusos no processo de repactuação: povos indígenas Tupiniquim-Guarani, quilombolas de Degredo, faiscadores e garimpeiros com Auxílio Financeiro Emergencial ativo.

Após a homologação do novo acordo, tiveram o direito reconhecido: os quilombolas de Sapê do Norte, Povoação e Santa Efigênia, indígenas Puri, faiscadores de Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado e Chopotó e garimpeiros de Mariana, Barra Longa e Acaiaca sem auxílio ativo no caso do retroativo).

Vale destacar que o povo Krenak, por sua vez, segue em outra frente do processo de reparação. Reconhecido desde o início como atingido, o povo Krenak construiu um plano próprio de reparação, articulado com sua comunidade e validado pelo Comitê Interfederativo. No entanto, enfrentam entraves para a implementação efetiva do plano por parte da Fundação Renova. 

Diáspora forçada

A história do povo Purí é marcada por séculos de resistência diante da violência colonial. Entre os séculos XVI e XIX, os Pury enfrentaram um longo processo de diáspora forçada, expulsos de seus territórios por frentes de colonização, bandeiras, fazendeiros e, mais tarde, pelo avanço de grandes empreendimentos. 

Muitos foram assassinados, dispersos ou forçados à invisibilidade, como estratégia de sobrevivência. Essa diáspora resultou na fragmentação das comunidades e no silenciamento de suas existências, mas também fortaleceu sua luta por reterritorialização e por reconhecimento enquanto povo indígena, vivo e presente no Leste de Minas.

Reparação integral

A luta dos Pury também insere-se num processo maior de defesa do direito à reparação integral. Como destaca a publicação Reparação integral de Danos Socioambientais e a Repetição que se Anuncia em Minas Gerais, da Coleção Caminhos da Justiça Global, o Estado brasileiro tem o dever de reparar integralmente as vítimas de desastres e violações de direitos humanos — o que inclui garantir a retomada da dignidade, da saúde, da autonomia e da vida comunitária dos atingidos. Reparação não é favor. É direito.

Um ano após o lançamento do Protocolo, os desafios continuam. A implementação das medidas reconhecidas pelo CIF ainda depende da efetividade da Fundação Renova e da atuação vigilante das comunidades e de suas assessorias técnicas. Persistem obstáculos burocráticos, resistência institucional e tentativas de desmobilização. 

Mas o povo Pury demonstra, com sua história e sua organização, que a reparação só será legítima se construída com a participação ativa dos atingidos, com respeito à sua identidade e às suas formas de existir.

O Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada do povo Pury não é apenas um documento jurídico. Ele é uma ferramenta viva de resistência, memória e autodeterminação. Marca um novo tempo para os povos originários do Leste de Minas, que seguem reafirmando: nada sobre nós, sem nós.

*A terminologia Puri designa a etnia coletiva de indígena puri. Quando escrito como “pury”, se refere especificamente ao povo do Leste Puri. 

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