Por que taxar os super-ricos fortalece a pauta de direitos humanos no Brasil

Enquanto cresce o número de bilionários no Brasil, movimentos pressionam pela regulamentação de um imposto previsto na Constituição há mais de 30 anos.

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo o Índice de Gini, e também um dos poucos que ainda não regulamentou o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), apesar de ser previsto na Constituição desde 1988. 

Somente em 2024, o país ganhou 19 novos bilionários, totalizando 60 pessoas no topo da pirâmide econômica (Forbes). Para se ter uma dimensão da desproporção e concentração de riqueza, um bilhão de segundos equivale a mais de 31 anos, enquanto mil segundos são pouco mais de 16,6 minutos. 

No mesmo ano, apesar de o rendimento médio real da população brasileira ter atingido o maior valor desde 2012, esse valor foi de apenas R$ 3.057 por mês, segundo o IBGE. 

Os dados revelam a profunda desigualdade no país, onde uma pequena elite acumula a maior parte da riqueza, enquanto milhões enfrentam dificuldades para acessar direitos básicos como saúde, educação, moradia e alimentação.

Relatórios da Oxfam mostram que os 10% mais ricos detêm 45% da riqueza global. No Brasil, o 1% mais rico concentra 63% da riqueza nacional — e paga proporcionalmente menos impostos do que os mais pobres. 

A injustiça tributária é um pilar da desigualdade no país: enquanto trabalhadores não conseguem escapar dos impostos sobre o consumo, que incidem sobre até 70% de sua renda, os mais ricos se beneficiam de isenções sobre lucros e dividendos, incentivos fiscais e ausência de tributação sobre grandes patrimônios, conforme explicou a diretora da Oxfam Brasil, Viviana Santiago, à Agência Brasil

Assim, a luta por justiça fiscal, em especial a taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos, não é apenas uma pauta econômica: é uma pauta de direitos humanos. Quando o Estado arrecada de forma injusta, são os mais pobres que pagam a conta. 

Sociedade civil busca ampliar a pauta

Nesta quinta-feira (10), movimentos sociais, partidos de esquerda e organizações de defesa de direitos humanos realizam protestos em várias capitais do país em defesa da taxação de grandes fortunas. 

As manifestações são realizadas no dia que a Câmara dos Deputados analisa o projeto do Governo Federal que aumenta o limite de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês, a partir de 2026 (PL 1087/25) e dias após os legisladores derrubarem o projeto de decreto legislativo que revoga o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).

Organizados pelos movimentos Frente Brasil Popular e Povo Sem Medo, a ação visibiliza ainda o Plebiscito por um Brasil Mais Justo, que também consultam a população sobre o fim da escala de 6 dias de trabalho por 1 dia de folga, sobre a redução da jornada sem redução salarial, e ainda sobre a privatização de direitos como a água e saneamento básico. 

Ampliação do debate no Brasil e no mundo 

Internacionalmente, cresce o reconhecimento de que uma tributação justa é essencial para combater desigualdades estruturais e fortalecer a democracia. Em 2023, durante sua presidência do G20, o Brasil defendeu a criação de normas internacionais para taxar os super-ricos. Em 2024, na cúpula dos BRICS realizada no Rio de Janeiro, o país reafirmou seu apoio à Convenção-Quadro da ONU sobre Cooperação Tributária Internacional, cujas negociações começaram oficialmente em fevereiro deste ano.

Apesar disso, em julho de 2024, a Câmara dos Deputados rejeitou uma proposta que previa a taxação de fortunas superiores a R$ 10 milhões. A resistência política à pauta é significativa: mais de 70% dos parlamentares são empresários ou fazendeiros, diretamente beneficiados pelo modelo regressivo em vigor.

Quem paga a conta e… quem se beneficia dela?

De acordo com a Oxfam Brasil, os 10% mais pobres pagam, proporcionalmente, três vezes mais impostos do que os 10% mais ricos. Isso se deve ao peso dos tributos indiretos (como o ICMS), embutidos no consumo e que afetam principalmente quem ganha menos. Já os mais ricos, além das isenções legais, contam com mecanismos de elisão fiscal e deslocamento de lucros para paraísos fiscais — práticas que drenam recursos públicos e comprometem a oferta de serviços essenciais.

Grandes corporações dos setores financeiro, agroexportador, minerador e energético — como Itaú, Bradesco, JBS, Vale e Petrobras — seguem acumulando lucros bilionários enquanto contribuem proporcionalmente muito pouco aos cofres públicos. A origem de muitas dessas fortunas está associada a práticas de exploração de recursos naturais, violações de direitos e concentração de poder econômico.

Um estudo da Oxfam aponta ainda a conexão entre o acúmulo extremo de riqueza, estruturas coloniais e instituições concentradas nos países do Norte Global. A manutenção dessa dinâmica se apoia em sistemas tributários injustos, imposições de dívidas impagáveis por organismos como o FMI e a taxação excessiva sobre bens essenciais para populações empobrecidas — como alimentos e medicamentos.

Justiça fiscal é elemento do debate sobre empresas e direitos humanos

A justiça fiscal também é uma dimensão central do debate sobre empresas e direitos humanos. O Princípio 11 dos Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos afirma que as empresas devem evitar causar impactos adversos e enfrentar danos relacionados às suas atividades — o que inclui a evasão fiscal e os fluxos ilícitos de capitais. Práticas fiscais injustas, como o deslocamento de lucros para paraísos fiscais ou o uso de brechas legais para não pagar impostos, comprometem diretamente a capacidade do Estado de proteger, respeitar e realizar os direitos humanos.

A coordenadora do programa de Justiça Socioambiental e Climática da Justiça Global, Melisanda Tretin, explica que essa agenda está no centro das discussões da ONU, que desde 2014 negocia um Tratado Internacional Vinculante sobre Empresas e Direitos Humanos. “Um dos pontos centrais é a devida diligência* obrigatória das empresas, que deve abranger também suas práticas fiscais. A responsabilidade corporativa sobre arrecadação justa de tributos já é reconhecida internacionalmente como parte do dever de respeito aos direitos humanos”, diz. 

Uma agenda rumo à equidade

A adoção de um sistema tributário progressivo — que cobre mais de quem pode mais — é uma condição essencial para que o Estado brasileiro avance nos compromissos assumidos nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 10 (Redução das Desigualdades) e o ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes). A proposta de taxar grandes fortunas, lucros e dividendos é também coerente com a defesa de uma ordem econômica justa e democrática.

Essa é a agenda defendida pela Coalizão Direitos Valem Mais, da qual a Justiça Global faz parte. Criada em 2018, a coalizão reúne mais de 200 organizações da sociedade civil, movimentos sociais, fóruns e conselhos em defesa de uma política fiscal justa como base para a efetivação dos direitos humanos. A coalizão denuncia os impactos das políticas de austeridade e propõe alternativas concretas para o fortalecimento do Estado.

Vale destacar ainda que o tema também foi discutido na última edição da Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento, promovida pelas Nações Unidas, realizada na Espanha. 

Em atividade paralela ao evento, que terminou em na semana passada, representando a organização não-governamental brasileira Inesc e a Latindadd (Rede Latino-Americana e do Caribe por Justiça Econômica, Social e Climática), Nathalie Beghin reforçou a importância do papel ativo da sociedade civil na construção de uma nova arquitetura financeira internacional, baseada em justiça fiscal, transparência e direitos humanos.

A economista criticou, porém, a falta de ambição dos resultados da conferência.  “Há uma enorme aposta no setor privado, mesmo sabendo que ele historicamente não demonstra compromisso com a realização dos direitos humanos”, afirmou Beghin.

Taxar os super-ricos não é apenas uma medida econômica. É um compromisso com a equidade, com a justiça social e com a construção de um país onde todas as pessoas possam viver com dignidade. O Brasil precisa romper com a lógica em que os pobres pagam mais e recebem menos. Uma política fiscal justa é indispensável para a democracia, os direitos humanos e o futuro do país.

*Devida diligência em direitos humanos é o processo pelo qual empresas identificam, previnem, mitigam e prestam contas sobre os impactos negativos de suas atividades nas pessoas. É uma forma de garantir que respeitem os direitos humanos em toda sua cadeia de valor. Isso inclui ouvir comunidades afetadas e agir quando há violações.

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