Por que pedimos o Boicote ao Agronegócio do Mato Grosso do Sul?

Via Conselho Indigenista Missionário

O Mato Grosso do Sul possui o 4º maior rebanho bovino do país, com mais de 21 milhões de cabeças de gado ocupando pouco mais de 20 milhões de hectares (IBGE, 2014). Os Guarani Kaiowá ocupam 35 mil hectares com uma população total de 46 mil indígenas (IBGE, 2010). Há mais pasto para um boi crescer no estado do que terra para uma família indígena criar os filhos, produzir o próprio alimento, enterrar os mortos. Em outras palavras, as terras indígenas no MS viraram pasto e por elas os Guarani e Kaiowá, terena e Kadiwéu morrem. A propriedade, em boa parte dos casos sustentada por títulos forjados, está inconstitucionalmente acima da vida. Não se trata de mera retórica das lideranças indígenas, portanto, quando elas dizem que no Mato Grosso do Sul um boi vale mais do que uma criança indígena. Os dados servem de bússola para a sociedade entender onde está o contexto da campanha de Boicote ao Agronegócio no MS organizada pelo Fórum Unitário dos Movimentos Sindicais e Sociais do Campo e da Cidade ao lado dos povos indígenas.

As áreas destinadas para a produção agrícola no estado, de acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), aumentaram 2676%, entre 1976 e 2010. O crescimento do setor, inclusive, passou a ocorrer de forma mais contundente, e não por coincidência, com a ascendente desgraça que se abateu, sobretudo a partir da segunda metade do século 20, sobre as populações indígenas no estado, chegando aos mais recentes dados: em 12 anos, 390 indígenas foram assassinados e outros 586 se suicidaram. A mesma seta estatística que enche de cifras os olhos do agronegócio é a que tira lágrimas dos olhos de famílias indígenas.

A territorialização do capital agropecuário no MS não tem limites. Não estamos falando apenas do reinado do boi. Conforme a Federação da Agricultura e Pecuária do MS (Famasul), a área total do estado usada pelo agronegócio, em 2013, era de 35.715.100 milhões de hectares. No entanto, a cada ano, mais hectares são incorporados às estatísticas do agronegócio. A Associação dos Produtores de Bioenergia do Mato Grosso do Sul (BioSul) afirma que a área plantada de cana-de-açúcar aumentou em quase 11% nos últimos anos. Enquanto os usineiros avançam com suas cercas, as demarcações no Mato Grosso do Sul estão há anos paralisadas e até com grupos de trabalho (GT) da Funai desconstituídos sem nenhuma explicação aos indígenas.

O tekoha Apyka’i, na região de Dourados, por exemplo, está com o procedimento demarcatório paralisado e é alvo de ações violentas e judiciais. Liderados por dona Damiana Guarani e Kaiowá, os indígenas hoje vivem num acampamento periodicamente atacado por homens armados e acossados por reintegrações de posse movidas na Justiça Federal pelo proprietário da Fazenda Serrana, arrendada à usina de etanol São Fernando. Dona Damiana teve o marido, filhos, sobrinhos e demais parentes mortos por atropelamentos, quando viviam às margens da rodovia, inclusive por caminhões carregando cana à usina, e viu crianças de sua aldeia mortas de fome. Em 2011, Nísio Gomes Guarani e Kaiowá foi assassinado no tekoha Guaivyry. O acampamento indígena estava montado numa pequena porção de mata ladeada por uma plantação de soja que se perdia de vista. No tekoha Kurusu Ambá não é diferente: em dez anos, sete lideranças assassinadas, crianças mortas de fome e comumente indígenas são intoxicados por agrotóxicos despejados por aviões sobre as lavouras soja, e na aldeia e na única fonte de água que possuem.

Na cana, indígenas não encontram apenas a morte, mas também trabalhos exaustivos e situações análogas à escravidão; os usineiros, mão de obra barata ou escrava. A BioSul afirma que as 22 usinas de açúcar e álcool instaladas no MS, com presença quase que exclusiva no cone sul do estado, processam 47 milhões de toneladas de cana e “com os novos empreendimentos industriais”, tal como a BioSul chama a expansão dos próprios negócios, o volume irá passar de 1,9 bilhão de litros (safra 2009/2010) para 5,9 bilhões de litros (safra 2015). O governo federal, por sua vez, ajuda o setor injetando recursos públicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), caso da Usina São Fernando: sim, aquela que planta cana no tekoha Apyka’i.

A BioSul estima que entre 1990 e 2013 as áreas utilizadas para a plantação de cana-de-açúcar cresceram 903% no Mato Grosso do Sul. Já o IBGE aponta que entre 2005 e 2012, o aumento do rebanho de animais de corte foi de 41% – mais pasto, mais desmatamento, mais água. A Conab estima que entre 1976 e 2013, os hectares destinados para plantação de soja no estado aumentaram 308%. O crescimento do agronegócio, portanto, é insustentável e desterritorializou a vida de centenas de famílias indígenas, que possuem o direito constitucional de regressarem aos seus antigos lares. Ao mesmo tempo, fazendeiros que lucram arrendando o que consideram suas propriedades ou trabalham para a rede do agronegócio não desejam permitir o retorno desses indígenas.

Estes ‘proprietários’ então formam milícias armadas, conforme a Justiça Federal já comprovou no caso Nísio Gomes, fazem leilões para arrecadar fundos à ‘segurança’ de fazendas, usam de poder político para controlar polícias, como o Departamento de Operações de Fronteira (DOF), e se articulam no Congresso Nacional, por intermédio da bancada ruralista, para aprovar medidas como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que visa transferir do Executivo para o Legislativo a demarcação de terras indígenas. Um procedimento administrativo, posto que o direito dos indígenas à terra é originário, que corre o risco de se transformar num procedimento político. São mais de 100 proposições legislativas, boa parte envolvendo a violação das terras indígenas, que correm no Congresso Nacional. E isso tem um objetivo: ampliar a quantidade de hectares para a cadeia do agronegócio e garantir que fazendas incidentes em terras indígenas continuem ocupadas por gado, soja, cana, usinas. Para não falar das mineradoras, que nas últimas eleições injetaram recursos nas campanhas ruralistas para a Assembleia Legislativa do estado. Que interesses elas teriam no MS?

Com a expansão assustadora das fronteiras do agronegócio, empresas nacionais e multinacionais se instalaram no estado e hoje lucram arrendando fazendas em terras indígenas para plantar soja, cana, milho, algodão e criar gado. Não apenas nas terras Guarani Kaiowá, mas também Terena e Kadiwéu. Nos territórios Terena e Kadiwéu, de acordo com mapas do IBGE, estão os maiores rebanhos de gados, aqueles que passam de 100 mil cabeças chegando até a 1 milhão. São dezenas de interesses privados: a gigante internacional da carne e dos alimentos processados, a JBS, com frigoríficos no estado, as multinacionais Monsanto, Cargill, Dreyfus, Syngenta, Basf e dezenas de usinas de cana, hoje chamadas de ‘usinas de agroenergia’ por conta do etanol e da energia produzida com o bagaço da cana. No Plano Safra 2015/2106, o governo federal injetou em tal cadeia R$ 187,7 bilhões – 20% a mais com relação ao plano anterior.

Os órgãos públicos, incluindo o Ministério do Desenvolvimento Agrário, são enfáticos em seus dados: mais de 70% dos alimentos que chegam ao consumo dos brasileiros são frutos do suor da agricultura familiar. O governo federal destinou R$ 150 milhões ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) 2015/2016 – 10,5% a mais com relação ao Pronaf anterior. A cadeia do agronegócio, conforme aponta organizações sociais do campo, tem atuado para transformar esses pequenos agricultores em funcionários de empresas alimentícias ligadas aos monopólios internacionais do setor. Um agricultor que antes produzia de forma diversificada, passou a criar apenas frangos com hormônios e reproduzindo o modelo de criação e abate da empresa que o contratou.

O agronegócio é regido pelas bolsas de valores mundo afora, trazendo consigo profundas inseguranças econômicas a toda sociedade, e não pelas necessidades das populações. Em 2014, o setor movimentou mais de R$ 1 trilhão no país, mas isso não nos salvou da crise econômica e deixou um passivo socioambiental trágico. Esse dinheiro não fez do país um lugar mais justo para os povos que nele vivem, mas transformou a bancada ruralista na mais poderosa do Congresso. Não poderia ser diferente com lucros bilionários do latifúndio. A carne, a soja e a cana que saem do Mato Grosso do Sul, parte desse trilhão, têm sangue indígena e não podemos mais aceitar nenhum modelo econômico, ou de ‘desenvolvimento’, que se baseie na morte e no genocídio de populações tradicionais.


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