Armas não educam: comentário sobre decisão do STF sobre uso de armas no socioeducativo

No último cinco de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal afirmou a inconstitucionalidade de leis estaduais que autorizam a agentes socioeducativos a portar armas de fogo.

Por Monique Cruz*.

A decisão unânime do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), divulgada em cinco de fevereiro, decidiu que, de fato, o porte de armas para agentes socioeducativos é inconstitucional. A decisão é um passo importante para afastar a aparência e a conduta prisional no Socioeducativo. 

Embora a realidade prática das mais de 400 unidades socioeducativas no país seja de reprodução da violência, a lei que institui o Sistema Nacional (n.º 12.594/2012), com mais de 10 anos de existência, estabelece que os espaços sejam no mínimo de promoção de direitos para crianças e adolescentes. 

A Ação de Inconstitucionalidade (ADIN) n.º 7424, tratou diretamente de uma lei aprovada no estado do Espírito Santo (n.º 1.017/2022) que autorizava o porte de armas, de uso permitido e restrito, para agentes socioeducativos ativos e inativos. A lei aprovada na Assembleia Legislativa do Espírito Santo foi proposta pelo Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (IASES), uma espécie de departamento em uma secretaria do executivo estadual, que não deveria legislar.  Mesmo a unidade federativa, como destacou o relator, ministro Gilmar Mendes, poderia legislar sobre o tema -, uma vez que isso viola a competência da União nos temas sobre armamento, incluindo o Estatuto do Desarmamento.

Não por acaso, a lei questionada na Corte é da mesma Unidade Federativa onde fica uma unidade socioeducativa sob medidas provisórias de proteção expedidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) há mais de dez anos: a Unidade de Internação Socioeducativa (UNIS), no município de Cariacica. 

A denúncia foi apresentada pela Justiça Global e o Centro de Direitos Humanos da Serra (CDDH) mediante graves violações de direitos humanos dos adolescentes privados de liberdade na unidade, que envolviam práticas de tortura, incluindo com uso de armamentos meno letais, superlotação e violência letal.

A Corte IDH se manifestou sobre a proposta do IASES em resolução de fevereiro do ano passado, onde deixou explícito que “medida [que autoriza o porte de armas para agentes] desvirtua o propósito do sistema socioeducativo, fomenta a violência e pode aumentar consideravelmente o risco de danos à integridade pessoal e à vida dos adolescentes privados de liberdade na UNIS”. 

A situação na unidade, como alvo das medidas provisórias, também foi visitada pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Silvio de Almeida, em agosto de 2023, no âmbito do Programa Caravana de Direitos Humanos. Infelizmente, ainda não há resultados visíveis dessa visita, embora a UNIS hoje seja reconhecida como uma espécie de “bolha” no sistema socioeducativo do ES, uma vez que ali, ao menos, não há superlotação atualmente ou casos graves de violações de direitos humanos como os que levaram à Corte IDH a determinar as medidas provisórias. 

Ao menos na UNIS, a militarização do Sistema Estadual é explicita, os agentes (uma maioria de profissionais terceirizados) utilizam uniformes militares, algemas, tonfas, coturnos. Ainda assim, é importante ressaltar que no estado do ES, a Defensoria Pública vem atuando em casos de violência física e psicológica contra adolescentes nas unidades do IASES que envolvem o uso de armamentos menos letais como sprays irritantes, bombas de gás e outros instrumentos. 

A militarização, inclusive, vem sendo denunciada à Corte IDH no âmbito das medidas provisórias com a utilização de parte do espaço pedagógico da UNIS para a guarda de materiais de segurança e armamentos. Assim como pela exposição dos agentes em páginas de internet pessoais e institucionais como se fossem forças especiais prisionais ou da segurança pública. A própria arquitetura da unidade é reveladora do modelo prisional aplicado.

A Justiça Global considera que a decisão do STF tem um caráter fundamental de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, especialmente da imensa maioria de adolescentes negros/as privados/as de liberdade ou em cumprimento de outras medidas socioeducativas no ES. Embora a população negra do estado seja de cerca de 58%, o total de adolescentes privados de liberdade negros é de 95%. Os dados são respectivamente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do IASES. 

Passados esses dez anos de medidas provisórias, as transformações aplicadas na UNIS não foram, entretanto, ampliadas como regras para as demais unidades socioeducativas do país, protegendo crianças e adolescentes de maus-tratos, tortura e superlotação. Tal fato, demonstrado pelas numerosas denúncias recebidas pelas Defensorias, demonstra a dificuldade do Estado brasileiro de internalizar as recomendações internacionais como políticas públicas.

A decisão do STF, por fim, é ainda uma importante demonstração de que crianças e adolescentes devem ser alvo de proteção e não punição, tampouco devem ser alvo de políticas que reiteram a violência. 

* Professora, assistente social e coordenadora do programa de Violência Institucional e Segurança Pública da Justiça Global. 

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