Marco temporal e conjunto de desmontes do PL490 é cartada final pró-genocídio indígena brasileiro

Nota de posicionamento

A Câmara dos Deputados aprovou na noite desta terça-feira (30) por maioria (283 a 155 votos e uma abstenção) o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que estabelece o marco temporal para restringir as demarcações de Terras Indígenas no Brasil. Numa tentativa de atropelar a análise do tema no Supremo Tribunal Federal, a urgência foi aprovada na última quinta-feira (25), concorrendo com diversas matérias que enfraquecem o já fragilizado cenário de proteção socioambiental brasileiro. 

Ao limitar o direito dos povos originários à terra e ao território à data de promulgação da recente Constituição de 1988, a Câmara dos Deputados corrobora com a violência reiterada ao longo da história brasileira que persiste e tem impacto até hoje, num ato muito conveniente aos interesses dos setores ruralistas, mineradores, grileiros e outros – que parecem ter cidadania mais valorosa perante Congresso -, já que apenas a partir do texto de 1988 os direitos territoriais indígenas passaram a ser reconhecidos pelo Estado brasileiro. Assim, fazer com que os indígenas comprovem a presença física na terra reivindicada em outubro de 1988, é apagar sua história, além de desconsiderar toda a violência que esses povos sofreram e sofrem.

A tese jurídica do marco temporal surgiu em 2009 em parecer da Advocacia-Geral da União, sobre a demarcação da Terra Raposa-Serra-do-Sol (Roraima), favorecendo produtores de arroz que chegaram à região no início da década de 1970 e antigos fazendeiros. O marco temporal se baseia na esdrúxula tese jurídica de que, pelo fato do texto constitucional usar o verbo no presente ao falar “terras tradicionalmente ocupadas”, estaria limitando o reconhecimento às terras ocupadas na data de sua promulgação. O caso Raposa Serra do Sol é discutido até hoje na esfera internacional, em razão de uma denúncia em análise pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

A Constituição de 88 utiliza, inclusive, a expressão “direitos originários” para se referir aos direitos indígenas sobre o território, o que remete ao caráter imemorial deste direito, que precede qualquer reivindicação privada sobre determinada terra. Por conta disso, o processo de demarcação, que é o instrumento pelo qual o Estado reconhece uma Terra Indígena, identificando e sinalizando seus limites, é ato declaratório que deve realizar esse direito imemorial.

Mas outro caso também é ilustrativo da gravidade desta situação: uma parte da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, onde vivem indígenas Xokleng, criada oficialmente apenas em 2003, é disputada por ruralistas e está sendo requerida pelo governo de Santa Catarina no STF. O argumento usado é justamente que, em 5 de outubro de 1988, ela não estava ocupada, ignorando o fato de que o povo Xokleng foi expulso e impedido por anos de retornar à terra. Em 2007, a Justiça Global entrou com um pedido de amicus curiae (amigo da corte) no caso. 

Ao menos, 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão pendentes podem ser afetados pela medida. Se aprovado, o já flagrante conflito nas florestas brasileiras será intensificado. A medida ainda tem vários trechos que flexibilizam a exploração de recursos naturais e a realização de obras de infraestrutura dentro dos territórios indígenas. Na prática, legaliza atividades hoje ilegais, como o garimpo em terras indígenas, e facilita a instalação de grandes empreendimentos nesses territórios sem nem mesmo consultar os povos afetados. Não é coincidência que a medida tenha ganhado espaço justamente meses depois da repercussão mundial do grave impacto da mineração para a garantia de vida dos Yanonami e também dos Munduruku, ambos povos amazônidas.

Ainda por cima, o projeto tira a responsabilidade de qualquer consulta às comunidades atingidas e à Fundação Nacional do Índio (Funai), facilita as atividades de exploração econômica por não-indígenas nos territórios e a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nessas terras. O efeito geral é a destruição de parte considerável da proteção jurídica conferida aos povos indígenas no Brasil – proteção essa que já era considerada insuficiente do ponto de vista dos parâmetros internacionais.

Ao lado de povos e comunidades atingidas, a Justiça Global, em seus mais de 20 anos de história, e muitas organizações têm denunciado as violações aos direitos indígenas, estabelecidos pelos parâmetros internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Americana dos Povos Indígenas e a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Ambas as declarações reconhecem a livre determinação dos povos indígenas como princípio fundamental, incluindo seu direito de manter suas formas de vida própria em seus territórios tradicionais e sobre os recursos naturais das terras que tradicionalmente ocupam ou tenham utilizado.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece uma dimensão ampla na qual o território indígena está inserido e que merece proteção jurídica, de acordo com os usos e tradições:

La cultura de los miembros de las comunidades indígenas corresponde a una forma de vida particular de ser, ver y actuar en el mundo, constituido a partir de su estrecha relación con sus tierras tradicionales y recursos naturales, no sólo por ser estos su principal medio de subsistencia, sino además porque constituyen un elemento integrante de su cosmovisión, religiosidad y, por ende, de su identidad cultural, por lo que la protección y garantía del derecho al uso y goce de su territorio, es necesaria para garantizar no sólo la supervivencia sino el desarrollo y evolución como pueblo de estas comunidades.

(Corte IDH. Caso Povos Kaliña e Lokono Vs. Suriname. Sentença de 17 de junho de 2005).

Democracia exige Memória, Verdade, Justiça e Reparação. O marco temporal é exatamente o avesso disso. É o símbolo do apagamento da história indígena e do aprofundamento do processo de extermínio dos povos originários. O marco temporal é uma manobra que busca dar forma jurídica a uma estratégia de ruralistas e mineradores para acelerar a expulsão e ampliar a violência contra os povos indígenas. 

Não ao Marco Temporal! Demarcação Já! Pelos direitos dos povos originários!

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