
Pesquisa da ONG sueca SwedWatch mapeia riscos enfrentados por defensores de direitos humanos em países onde os projetos de energia renovável estão sendo rapidamente desenvolvidos. O caso da comunidade quilombola do Cumbe, no Ceará, expõe violações graves em nome da transição energética.
Um novo relatório da Swedwatch – com colaboração do Instituto Terramar e outras organizações – revela que projetos de energia renovável vêm sendo implementados em diversos países sem respeitar direitos fundamentais de comunidades locais. Intitulado “Energias renováveis e represálias: defensores em risco na transição para a energia verde”, o estudo reúne casos do Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas. Em comum, os quatro contextos mostram que, em regiões com espaço cívico restrito, aumentam os riscos para pessoas e grupos que atuam na defesa de direitos.
Acesse aqui o relatório.
Segundo a pesquisa, mais da metade da capacidade futura de parques eólicos e dois terços da capacidade de parques solares estão planejadas para países onde a participação social é limitada. Esses mesmos países concentram altos índices de violência contra defensores ambientais e territoriais — como o Brasil, que aparece entre os líderes em assassinatos de defensores nos últimos anos.
No Ceará, o caso da comunidade quilombola do Cumbe exemplifica como a expansão de fontes renováveis pode ocorrer sem consulta adequada, com efeitos sobre modos de vida e a segurança de lideranças locais.
Comunidade Quilombolas do Cumbe: impactos de um projeto eólico sem consulta
O relatório apresenta o caso do projeto eólico Bons Ventos, instalado a partir de 2008 na comunidade quilombola do Cumbe, em Aracati–CE, sem consulta prévia, livre e informada — direito garantido a povos e comunidades tradicionais. O projeto, que no início pertenceu à Bons Ventos Geradora de Energia S.A., começou em 2008, e em 2012 foi vendido para a CPFL Energias Renováveis, atual dona. A usina de 67 turbinas instaladas contou com o financiamento de 50 milhões de dólares pelo NIB (Nordic Investment Bank) e foi cofinanciada pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e BNB (Banco do Nordeste do Brasil). Desde então, moradores relatam impactos territoriais, sociais e culturais, além de perseguição a lideranças que questionam o projeto.
“Vieram sem informação, sem explicação. Como é possível planejar algo que afeta uma comunidade tradicional sem ouvi-la?”, pergunta uma liderança entrevistada. Segundo ela, o projeto provocou conflitos internos e criminalização de defensores que deixaram a comunidade por questões de segurança.

O Instituto Terramar, que atua na região, alerta para o crescimento das ameaças contra comunidades litorâneas. “As empresas eólicas adotam práticas que enfraquecem a organização coletiva e estimulam divisões locais. Isso, combinado à presença de grupos armados em áreas em disputa, eleva os riscos para defensores e defensoras”, afirma a organização.
Expansão do setor no Nordeste Brasileiro e exclusão de comunidades
O Ceará é o estado com maior número de parques eólicos do país: 100 em operação e 75 em fase de planejamento. Também concentra cerca de 25% dos projetos eólicos offshore atualmente em licenciamento no Brasil. Muitos deles se sobrepõem a territórios de povos indígenas, comunidades pesqueiras e quilombolas, sem consulta prévia e com pouca transparência nos processos de licenciamento.
Comunidades relatam perda de acesso a áreas de pesca e extrativismo, mudanças no modo de vida, impactos à saúde e à convivência comunitária. Há também relatos de aumento da exploração sexual de mulheres durante a construção dos parques e da saída forçada de moradores em busca de sustento em outras regiões.
Embora o Brasil já tenha uma matriz energética majoritariamente renovável, novos projetos — como os de hidrogênio verde — têm foco principal na exportação, não na garantia de acesso à energia para a população local.
Riscos para quem defende direitos
O Brasil aparece entre os países mais perigosos para defensores ambientais, segundo a Global Witness. Apesar da existência, desde 2004, de um programa federal de proteção a defensores de direitos humanos, o país segue registrando altos índices de violência e criminalização.
O relatório aponta que empresas e governos têm falhado em considerar os riscos ao espaço cívico nos processos de licenciamento e execução de projetos de energia. Em muitos casos, defensores são vistos como opositores ou obstáculos, e não como atores centrais para garantir que a transição energética ocorra de forma justa.
“A transição para fontes renováveis não deve acontecer à custa de direitos fundamentais”, afirma Alice Blondel, diretora da Swedwatch.
O peso da transição para o Sul Global
Além do Brasil, o relatório apresenta casos em outros três países:
- Honduras: O projeto solar Los Prados gerou ações judiciais contra defensores, repressão policial e campanhas de difamação.
- Filipinas: Representantes do povo indígena Tumandok foram mortos e perseguidos após denunciar os impactos de um projeto de reservatório.
- Moçambique: O projeto hidrelétrico Mphanda Nkuwa avançou com avaliação ambiental limitada e ameaças a ativistas que questionaram a iniciativa.
A Swedwatch contou com a contribuição do Instituto Terramar, da Red de Abogadas Defensoras de Derechos Humanos e do Jalaur River for the People’s Movement (JRPM).A pesquisa reuniu dados de mapeamentos internacionais sobre espaço cívico (CIVICUS) e expansão renovável (Global Energy Monitor e TransitionZero), além de entrevistas com comunidades e defensores. A principal conclusão é que a transição energética, para ser efetiva e legítima, precisa incorporar a proteção de direitos humanos como elemento central.
Os casos e entrevistados foram identificados em conjunto por quatro das organizações-membro da Swedwatch, incluindo a Sociedade Sueca para a Conservação da Natureza, Diakonia, Afrikagrupperna, e Act Church of Sweden, que também forneceram contribuições para o relatório. Além disso, a organização-membro da Swedwatch, a Solidariedade Suécia-América Latina, também apoia o relatório.
Foto da capa: O perigo dos cabos condutores de eletricidade inviabilizam o deslocamento pelo espaço tomado pelas usinas (Crédito: Elena Meirelles/ Instituto Terramar, 2023)