Restrição às saídas temporárias representa retrocessos na garantia de direitos humanos de pessoas em privação de liberdade

Por 62 votos a favor e apenas 2 contrários e uma abstenção, o Senado aprovou na última terça-feira (20) o projeto de lei (PL) que altera a Lei de Execução Penal com a restrição da saída temporária e de uma série de outros direitos de pessoas presas com sentença, o PL 2253.

A proposta de lei de autoria do deputado Pedro Paulo (MDB-RJ) que restringe uma série de direitos a pessoas que cumprem pena no sistema prisional, entre eles o da saída temporária, chegou ao Senado nas mãos do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) sem um debate amplo e com base em evidências, dando corpo a uma série de crenças populistas relacionadas ao sistema prisional como um todo. A proposta, que agora retorna à Câmara dos Deputados, representa um retrocesso na construção de políticas de justiça criminal com respeito aos direitos humanos e pode agravar a crise no sistema prisional. 

Antes, é importante destacar que a saída temporária é um direito de progressão de regime constitucionalmente garantido para adultos em privação de liberdade no sistema prisional no regime semiaberto que estão próximos do fim da pena sob uma série de condições e motivos. 

Um dos seus objetivos é facilitar o retorno ao convívio social por meio do fortalecimento do vínculo afetivo com a comunidade e com familiares. A proposta aprovada pelo Congresso Nacional, porém, exclui essa possibilidade. 

Um dos principais argumentos utilizados pelos apoiadores da proposta é o de que a saída temporária facilita a fuga e expõe a população a risco. Mas levantamentos apontam que ampla maioria retorna à prisão após a saída temporária. No último Natal, apenas 5% não retornaram, por exemplo.

Além disso, a maioria das pessoas privadas de liberdade responde por crimes contra o patrimônio (40%) e contra a Lei de Drogas (28%) – principalmente por furtos e porte de pequenas quantidades. Os dados são da Secretaria Nacional de Políticas Penitenciárias  (Ministério da Justiça) e incluem aqueles que estão no regime fechado. 

Enquanto propostas rasas, sem embasamento técnico adequado, que desconsideram os direitos humanos ganham holofotes, a crise no sistema prisional brasileiro se agrava: a população privada de liberdade do país – a terceira maior do mundo – tem crescido exponencialmente, chegando a quase 700 mil pessoas. Pesquisas do Conselho Nacional de Justiça apontam que 48% dos presídios brasileiros hoje estão com superlotação. Além disso, 33% são considerados “em condições ruins ou péssimas” e 41,3% “regulares”. 

Os dados salientam um modelo industrial-prisional que não funciona para a garantia de segurança pública, que estabelece a prática de tortura como um padrão e que viola os direitos tanto daqueles que estão cumprindo pena quanto de seus familiares. Deveríamos, ao contrário, estar lutando pela redução da população privada de liberdade. Esses fatores, porém, foram excluídos do debate envolvendo a referida proposta. 

No acompanhamento, há mais de dez anos, de medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos em unidades prisionais em Pernambuco, no Complexo Prisional do Curado, e Maranhão, no Complexo Prisional de Pedrinhas, a Justiça Global identifica todos os anos o aprofundamento das violências no cárcere que, na nossa avaliação, serão pioradas com o fim das saídas temporárias.

Por fim, vale mencionar informações destacadas pela nota técnica enviada ao Senado em virtude da discussão do Projeto de Lei por mais de 60 entidades – entre elas a Agenda Nacional pelo Desencarceramento e a Rede de Justiça Criminal, das quais a Justiça Global parte. O documento observa que a proposta pode ter um efeito oposto ao afirmado por seus defensores: piora a segurança pública e ainda aumenta os gastos da União e dos estados. 

A nota destaca, por exemplo, estudo do CNJ que apontou que “pessoas morrem no cárcere por causas supostamente “naturais”, porém, na realidade, tais mortes são decorrência de um longo processo de tortura pela falta de acesso a condições mínimas de sobrevivência, entre elas a fome, o acesso à água e a exposição ao frio”. Menciona ainda o enorme desafio de reinserção de pessoas egressas, por exemplo, ao mercado de trabalho, igualando o regime semiaberto ao fechado. 

Assim, a Justiça Global espera que o projeto de lei 2253 tenha, no mínimo, uma discussão mais apropriada e enfrente resistência no retorno à Câmara dos Deputados, se colocando à disposição para trazer evidências coletadas pela organização em sua atuação, e que o caráter inconstitucional do PL seja observado pelos poderes Executivo e Judiciário. Além disso, espera que a crise do sistema prisional seja efetivamente pautada pelas autoridades federais e estaduais com vistas à garantia dos direitos humanos na elaboração e execução de políticas de segurança pública.

O projeto de lei 2253 também explicita, sobretudo, o racismo que se expressa na desvalorização da vida de pessoas privadas de liberdade. Quando 95% das pessoas retornam para condições insalubres, com pouco ou nenhum acesso à água potável, sem alimentação adequada e em condições de tortura sistemática, constata-se que a maior parte da sociedade que não se importa com as vidas perdidas no cárcere todos dos anos, como ocorreu no Complexo do Curado (PE), onde a Justiça Global documentou 236 mortes em 10 anos, a maioria por questões de saúde e muitas outras causadas por violências provocadas pelo próprio Estado. 

Foto da capa: Divulgação/Governo do Ceará.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *