Brasil condenado por crime da fábrica de fogos: o que não tem mais volta

Por Camila Fiúza

 

Naquele 11 de Dezembro de 1998, em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, vozes desesperadas clamavam por socorro enquanto eram consumidas pelo fogo decorrente da ganância de empresários e do descaso do Estado brasileiro. Após horas de gritos e de sofrimento daqueles que poderiam ter tido suas vidas poupadas, veio a confirmação: 64 pessoas mortas e seis feridas. A maioria delas era negra; 22, eram crianças. 

 

Mas o que são números diante de tantas histórias que tiveram, cada uma delas, suas vidas apagadas sistematicamente pelo racismo estrutural? O Estado brasileiro, por meio de uma necropolítica, provoca o apagamento de pessoas negras do protagonismo da história do país. Hoje, continuam vivas as vozes de Carolina e Abdias, exemplos de sobreviventes.

 

Tal qual as vítimas da tragédia, Carolina de Jesus era de família pobre e teve uma infância sofrida, tendo cursado somente os primeiros anos do primário. A escritora tornou-se reconhecida após a visibilização de seus inúmeros diários que escrevera relatando seus dias como moradora da favela do Canindé, em São Paulo, onde trabalhava como doméstica e catadora de papel. Um de seus diários, intitulado Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, foi traduzido em 13 idiomas e vendeu mais de 100 mil exemplares em 40 países.

 

Créditos: reprodução/acervo Instituto Moreira Salles
Créditos: reprodução/acervo Instituto Moreira Salles

 

 

Abdias do Nascimento, neto de pessoas escravizadas, também começou a trabalhar cedo: aos nove anos, apenas dois anos de diferença da única vitima fatal do sexo masculino: um menino de 11. Este buscava, naquele espaço, uma oportunidade de manter a sua sobrevivência, que lhe era negada todos os dias pelo sistema capitalista, excludente, racista e genocida. Sim, nossas irmãs e irmãos negros são sobreviventes do racismo estrutural e da negligência diária do Estado brasileiro. 

 

Créditos: reprodução
Créditos: reprodução

 

Não fossem as histórias de grandes nomes de personalidades negras que tiveram vidas tão difíceis, talvez alguém pudesse pensar que as mulheres, crianças e homens que trabalhavam em uma fábrica de fogos não tivessem muito tempo para quiçá imaginar um futuro diferente; afinal, o trabalho análogo à escravidão punham-os os direitos a meros papéis, pólvoras e cinzas no chão. Consumava-se assim a própria violação do direito a uma vida que a branquitude conhece por “digna”. 

 

Para as 70 vítimas do incêndio da fábrica de fogos, bem como para seus antepassados escravizados, muitos vezes mortos, não lhes foi dado o poder de escolha. É que a fome não espera e uma oportunidade de “emprego”, por mais perigoso e insalubre, é sempre uma esperança para quem precisa. Para cada uma das vidas abandonadas e mortas sistematicamente pela negligência do Estado brasileiro, eram pagos 0,50 centavos para cada mil traques de massa (fogos conhecidos por estalos) produzidos no galpão da fazenda de Osvaldo Prazeres Bastos. 

 

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Nunca saberemos ao certo, mas para a mãe da sobrevivente Vitória França, que atendia por Rosângela – na época com 17 anos -,  a certeza de poder carregar a filha dali a quatro meses talvez nutrisse em si a tal da esperança de dias melhores, junto a Vitória, que nasceria aos cinco meses, e hoje é símbolo de fé e resistência para outros sobreviventes da tragédia. 

 

Quem sabe as irmãs Mônica, de vinte e dois anos; Fabiana, de catorze; e Adriana, de quinze, tenham sido amor da vida de alguém? E elas eram. Foram o amor da vida de Maria Madalena Santos Rocha, de sessenta e três, que perdeu as três filhas para as chamas, gritos e desesperos durante os ardores do incêndio que marca a tragédia. O que para toda mãe que ama, é difícil de superar, porque nem mesmo a maior das preocupações talvez desse conta de imaginar. Do amor, dois frutos: dois netos, filhos de Mônica, PRESENTE.

 

Maria Balbina dos Santos, de cinquenta e nove anos, conhecida como Dolores, traz na própria alcunha e fincado no peito a Dor da ausência de sua única filha, Arlete Silva Santos. No trágico dia, ela tinha catorze anos. Sonhos, planos, criancices, esperanças… Foi tudo devastado pela pirotecnia da escravatura não formal; da negligência parcial; e do genocídio seletivo. 

 

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Dolores reuniu forças e luta há quase 22 anos frente ao movimento Onze de Dezembro. Foto: arquivo pessoal.

 

Vidas foram devastadas pela pirotecnia da escravatura não formal; da negligência parcial; e do genocídio seletivo. Entre todas as mulheres e esse emaranhado estruturado pelo Estado, junto a Maria, Dolores, Arlete… Estava Rosângela Rocha, a Rosa. Manteve-se viva, mas perdeu três irmãs, perdeu da vivacidade alguns pedaços, mas resistiu. Tornou em luta, o sofrimento! Hoje é uma das líderes do Movimento 11 de Dezembro.

 

A condenação do Brasil proferida nessa segunda-feira (26) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Organização dos Estados Americanos, exigindo do país uma série de medidas de caráter estrutural que garantam a não repetição de tragédias como a ocorrida em Santo Antônio de Jesus é uma prova do trabalho contínuo do Movimento 11 de Dezembro, criado por vítimas e familiares da tragédia com o apoio da Justiça Global, uma organização comprometida a lutar até o fim pela reparação dos danos sofridos pelos familiares e vítimas do abandono do estado. 

 

A todas as  Rosângelas, Dolores e Vitórias, o nosso afeto. Que a condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos seja o início de uma jornada de justiça na luta contra o racismo, a pobreza e as violações a todo o povo brasileiro. 

 

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Dentre as medidas estabelecidas pela OEA estão: a criação de alternativas econômicas para a inserção econômica e laboral das vítimas e familiares da explosão e a criação e execução de um programa de desenvolvimento socioeconômico destinado à população de Santo Antônio de Jesus. Além da  responsabilização cível e penal dos perpetradores da explosão, a sentença exige a determinação de medidas de reparação às vítimas e seus familiares, como tratamento médico e psicológico, além da devida indenização.

 

As lágrimas que brotam na face daqueles que ficaram e sentem a dor de perder a vida de seus familiares revelam que mesmo após vinte e dois anos, nada será como antes. As vidas interrompidas e os sonhos dizimados não voltarão. Entretanto, a condenação do Estado brasileiro é, sobretudo, a constatação de que só vence quem luta; é a condenação do racismo estrutural do Brasil; é, talvez, a possibilidade de salvar vidas negligenciadas pelo Estado, que neste exato momento, estejam sendo exploradas nos inumeráveis locais de trabalho análogo à escravidão, vitimadas pelo racismo cotidiano. 

 

Programa Vozes e Reivindicações apresenta entrevista com sobrevivente da tragédia; ouça no link a seguir:

 

 

 

 

 

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