
1º texto da série “Derrubar cadeias, derrubar senzalas: a tortura e o racismo na privação de liberdade no Brasil”
Por Luna Ribeiro e Ruggeron Reis, da Justiça Global
26 de junho é o Dia Internacional de Apoio às Vitimas de Tortura. A data, estabelecida pela ONU em 1997, é uma referência à Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em vigor desde o dia 26 de junho de 1987.
No Brasil, a(s) tortura(s) e práticas semelhantes são fios condutores da história da opressão no país. Das agressões, perseguições e etnocídios dos primeiros colonizadores com povos indígenas – que passavam por violências sexuais e sequestros, além da catequização forçada – até o fato de uma das imagens mais marcantes dos tempos da escravização negra no país, pintada pelo francês Jean Baptiste Debret, mostra um escravizado sendo açoitado no Pelourinho, como forma de punição, foi através da brutalidade colonial que se ergueu o Estado brasileiro.

Após a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, essas práticas pouco mudaram. Criaram-se, entretanto, novos aparatos para disfarçá-las. Com a expansão do cárcere no país, desde aos manicômios psiquiátricos às cadeias, as práticas de tortura saíram da praça pública para dentro das celas. Foi então que se institucionalizou a tortura.
A perseguição política ganhou contornos de importância na tortura: há relatos de militantes sindicalistas, comunistas e anarquistas sendo torturados durante o Estado Novo varguista; enquanto isso, os “presos comuns” seguiam recebendo tratamentos que hoje convencionamos chamar de tortura.
A Ditadura Militar foi, no entanto, o período mais emblemático dessas ações na história da República. De acordo com um estudo divulgado pela Human Rights Watch em 2019, mais de 20 mil pessoas teriam sido torturadas durante esse regime. O intervalo com o maior número de vítimas ocorreu entre 1969 e 1978, época em que o Ato Institucional nº 5 estava em vigor. Nesse período, a tortura passou a ser utilizada como instrumento sistemático de interrogatório, contando com recursos específicos, pessoal treinado, instalações dedicadas e instrumentos próprios.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), divulgado em dezembro de 2014, apresentou 29 recomendações finais. No entanto, apenas duas foram efetivamente implementadas pelo poder público: a revogação da Lei de Segurança Nacional e a adoção das audiências de custódia, voltadas à prevenção da prática de tortura e de prisões ilegais. Nesses mais de 50 anos do golpe de 1964, não restam dúvidas sobre a importância de desmilitarizar a polícia. Inseparável disto está a urgência em abrir todos os arquivos da ditadura e utilizar a memória para que não haja repetição e para que histórias de tortura e outras violações de direitos humanos não continuem a ser apagadas.
A maioria dos locais onde ocorreram violações de direitos humanos, contudo, não possui qualquer sinalização que informe sobre os abusos cometidos durante o regime militar. Alguns desses espaços, inclusive, encontram-se abandonados e em avançado estado de degradação. A antiga sede do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social no Rio de Janeiro), símbolo da repressão durante a Ditadura Militar, permanece abandonada, como se a memória das violações ali cometidas pudesse ser esquecida. A luta por transformá-la em um Centro de Memória e Direitos Humanos resiste na campanha, assinada pela Justiça Global, “Sem memória, não há democracia”, diante de um presente em que a violência estatal persiste, especialmente contra jovens negros das periferias, cujas histórias seguem sendo apagadas.
A atual situação das prisões
Dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) revelam um quadro alarmante: são mais de 860 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil, colocando o país como o 3º país com maior população carcerária do mundo (atrás apenas dos EUA e da China). Apesar de prender em excesso, há um déficit de 200 mil vagas, com um terço das unidades prisionais em condições ruins ou péssimas.
Em 2023 foram registradas 3.091 mortes de pessoas encarceradas no país, sendo 703 por homicídio — um índice proporcionalmente quatro vezes maior que o da população geral. Desde 2015, quando foram implementadas as audiências de custódia, foram denunciadas 120 mil acusações de maus-tratos dentro dos espaços de privação. Dados do Sistema de Audiência de Custódia (Sistac), do Conselho Nacional de Justiça, apontam que, no ano de 2023, 8,4% das audiências de custódia realizadas no Brasil registraram denúncias de tortura ou maus-tratos, com o estado do Amazonas apresentando a maior proporção de denúncias (18%), enquanto o Distrito Federal teve a menor proporção, com 0,9%.
A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) também levantou dados importantes para um “raio-x” das violações de direitos humanos no cárcere brasileiro. Segundo o órgão, entre 2020 e 2023, houve um aumento nas denúncias dessas violações, quase triplicando no período, com 11.631 registros no total. Somente em 2023, foram registradas 5.007 denúncias, cerca de 14 denúncias por dia. Já no 1º semestre de 2024, foram registradas 3.100 denúncias, numa média de 17 denúncias por dia. As violações por denúncia também tem aumentado, chegando a 23.048 em 2023 (4,6 violações por denúncia).
São Paulo, Minas Gerais e Minas Gerais foram os estados com o maior número de denúncias em números totais, mas proporcionalmente à população carcerária, o rio Grande do Norte é quem lidera esse triste ranking.
Ao colocarmos uma “lupa racial” nos dados, escancara-se uma realidade: 70% das pessoas privadas de liberdade no Brasil são negras. Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), 62% das mulheres em privação de liberdade são negras. Não é exagero afirmar que as prisões são um dos principais mecanismos de reprodução do racismo no Brasil. A justiça criminal é, em todas as suas etapas, parte essencial do genocídio da população negra no país.
Com esses dados em mãos, podemos chegar a uma conclusão simples: combater a tortura no sistema prisional e em todas as formas de cárcere é combater uma violência racial perpetuada desde os tempos da escravização negra e do princípio do genocídio indígena no Brasil.
O que é a tortura no sistema prisional?
É importante salientar que quando tratamos de tortura no sistema prisional não estamos nos restringindo à violência física direta, como socos, chutes ou choques elétricos. Ela se manifesta também por meio de práticas sistemáticas que causam sofrimento físico e psicológico, como a restrição à luz solar, à ventilação adequada, a manutenção indevida da privação de liberdade por excesso de sanções disciplinares. Tais práticas constituem formas graves de violações de direitos humanos e devem ser enfrentadas com a seriedade e urgência que o tema demanda.
Estamos falando de desumanização e poder baseados no desejo de morte e de máximo sofrimento da população negra e indígena a partir de narrativas públicas que põem em risco, sobretudo, a infância e juventude no Brasil, devido ao viés racial das políticas criminais e repressivas.
Cabe destacar que estas conclusões estão de acordo com o Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989, que promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. De acordo com o artigo 2 “entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.” Outro importante ponto é sobre os responsáveis pelo crime de tortura, já que de acordo com a Convenção Interamericana, são responsáveis: “os empregados ou funcionários públicos que, atuando nesse caráter, ordenem sua comissão ou instiguem ou induzam a ela, cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam”
O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT)
O fortalecimento das instituições democráticas é considerado fundamental para garantir a dignidade e os direitos da população privada de liberdade. Dentro desse escopo o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) é fundamental na proteção das pessoas privadas de liberdade, que, mediante a realidade do encarceramento que afeta majoritariamente a pessoas negras, indígenas, moradoras de periferias e em situação de vulnerabilidade social, o SNPCT se torna mais um mecanismo de luta contra o encarceramento em massa e contra o racismo nas instituições brasileiras, tendo como pontos primordiais a garantia dos direitos à memória e à verdade, reconhecendo os impactos históricos da violência do Estado sobre essas populações.
O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) é composto, de modo permanente, pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN/MJSP). A Justiça Global compõe o CNPCT.
Apesar da determinação legal, a implementação dos mecanismos estaduais tem ocorrido de forma desigual entre os estados, com alguns criando seus sistemas nos anos seguintes à lei, enquanto outros ainda enfrentam dificuldades para estruturar e garantir o funcionamento desses órgãos.
Atualmente, entre os 27 Estados brasileiros, apenas oito possuem Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura (RJ, AC, RO, SE, PB, ES, MA, TO). O estado de São Paulo, por exemplo, que possui a maior população do país e um histórico de graves violações de direitos humanos, incluindo a prática de pena de fome em seu sistema carcerário, resiste em adotar uma politica efetiva de prevenção e combate à tortura. No momento, ainda não existe um Mecanismo Estadual de Combate e Prevenção à Tortura no Estado.
Para além dos poucos estados com presença de mecanismos, há uma dificuldade e desgaste político nos processos democráticos e de adaptação às normativas internacionais. No Estado de Pernambuco, por exemplo, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT-PE) tem especial importância, pois é ele quem supervisiona o cumprimento de normativas internacionais em matéria de prevenção e combate à tortura, garantindo a proteção da vida e da integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade no Estado, em especial no Complexo Prisional do Curado, no Recife, que tem medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos qual a Justiça Global é peticionária.
Mas em maio de 2025, o CNPCT, órgão colegiado autônomo vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, emitiu uma resolução direcionada ao Governo pernambucano recomendando “a suspensão imediata dos atos de posse dos peritos indicados pelo governo do Estado” devido a não realização de processo seletivo pelo Comitê Estadual. Essa violação legal é por não cumprir a Lei Federal que ratifica o Protocolo da ONU para a prevenção à tortura, assim como uma lei estadual e outra lei federal exigem “notório conhecimento da pauta, atuação e experiência na defesa dos direitos humanos relacionados à prevenção e combate à tortura” para ocupar a posição de perita(o) como padrões também da ONU.
Em uma data como a de hoje, é importante trazer a centralidade que a construção de memória, verdade e justiça para vítimas das agressões de Estado (diretamente ou com sua anuência), é essencial para agir na elaboração de políticas de combate e prevenção à tortura.
Este é o primeiro texto da série “Derrubar cadeias, derrubar senzalas: a tortura e o racismo na privação de liberdade no Brasil”, que pretende discutir a conexão entre racismo, privação de liberdade e tortura. Acompanhe em nosso site (justicaglobal.org.br) e em nossas redes sociais!